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Salgadinhos campeões

Nenhuma surpresa: é do Martin Fierro a melhor empanada de São Paulo

Por Humberto Werneck
Atualização:

Não saberia dizer quando foi que cravei os dentes pela primeira vez numa empanada do Martin Fierro. Em algum momento dos últimos 39 anos, seguramente, pois é esta a idade que tem hoje a casa da Ana Massochi. Foi no tempo em que eu ia à rua Simão Álvares, na Vila Madalena, para fazer minha cabeça – por dentro e por fora. Por dentro, em sofridas e luminosas sessões de terapia. Por fora, num salão de barbeiro onde me aparavam as melenas, nas quais os fios brancos pareciam ser intrusos. Um dia me dei conta de que bem perto, na ruaAspicuelta, ficava o Martin Fierro – e nele, instantaneamente seduzido, passei a fazer também o estômago.

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A data se apagou, mas não a lembrança da epifania gastronômica proporcionada por aquela empanada inaugural – de frango, quase posso jurar, pois esta vem a ser a minha preferida, ali e em qualquer outro lugar. Admito que estou em minoria, pois a mais solicitada é a de carne, adiante das de frango, de milho ou de palmito. Não por acaso, a carne foi o recheio em torno do qual recentemente se travou uma disputa promovida pelo caderno Paladar, do Estadão, para escolher a melhor empanada de São Paulo

A vencedora, como se sabe, foi a do Martin Fierro – mais gostosa, acho eu, que tantas outras que tenho encarado por aí, inclusive em Buenos Aires, a capital mundial das empanadas. Na opinião das papilas gustativas de quem há tanto tempo vem ruminando o que haja de melhor na praça, a de carne do Martin dá de goleada na que fez a fama do reverenciado El Sanjuanino, no 1515 da Calle Posadas. Resta aos hermanos o consolo de saber que a Ana Massochi, dona e comandante do Martin, assim como do impecável La Frontera, mesmo vivendo aqui há décadas, é tão (ou até mais, penso às vezes) argentina quanto eles. 

Para mim, não foi surpresa a decisão do júri do caderno Paladar. Até por preferir outro recheio, nem remotamente posso ser considerado um expert na categoria; mas, frequentador antigo, sou testemunha do ininterrupto esforço de aperfeiçoamento que nesses 39 anos fez da empanada de carne do Martin a campeã. Entre as concorrentes, me pergunto, quantas abrigam carne picadinha na faca, e não moída, trabalhosa opção para que não se perca na trituração um tanto do sabor da matéria-prima?

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No embalo da empanada, bem que poderia agora o Paladar promover disputas em torno de outros tipos de salgados. Estou falando, é claro, de salgados reconhecíveis, e não desses enigmas culinários, alguns deles estrambóticos, que exigem legenda ou consulta ao garçom. Salgados clássicos, apenas. 

No que depender de mim, o próximo concurso seria o da melhor empada – petisco que, não custa relembrar, degustado na juventude, gratificou Pedro Nava ao ponto de lhe haver inspirado, décadas depois, uma descrição antológica em Beira-Mar. “As maiores, as mais suntuosas empadinhas que já comi no mundo”, rememorou, saudoso, o memorialista. “Eram pulverulentas apesar de gordurosas, tostadas na tampa, moles do seu recheio farto de galinha ou camarão. Desfaziam-se na boca. Difundiam-se no sangue.”

Cheguei ao mundo tarde demais para que pudesse me regalar no Trianon, o bar belo-horizontino onde Nava saboreou as inesquecíveis maravilhas, para ele uma versão mineira da madeleine de Marcel Proust. Mas em várias praças, sobretudo em Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, pela vida afora, tenho encarado empadas que não fariam feio, quem sabe, ao lado daquelas que punham a salivar o escritor mineiro, tão glutão quanto gourmet. Glutão, sim, dado a abrir a geladeira à noite para umas colheradas de feijão. 

Vivendo longe de Belo Horizonte há quase meio século, raras vezes lá estive sem abrir brecha no programa para peregrinações em busca da melhor empada. Já contei que tive em minha mãe uma inexcedível informante nesse departamento. Numa cidade onde a boa mesa de hoje pode estar execrável daqui a poucos meses, a dona Wanda era um farol seguro também em matéria de empadinhas. Nunca duvidei de seu bom faro, nem mesmo no dia em que me recomendou como “the best” o salgadinho à venda numa lanchonete de hospital. Com certeza há por aí uma fartura de gente que deu entrada em casa de saúde por causa de um salgado. Mas talvez não haja muitos que lá entraram exclusivamente para saborear uma empadinha.

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Mais de uma vez, por iniciativa própria ou a convite de terceiros, escrevi sobre salgadinhos, mineiros em especial – aí incluída uma coxa de camarão com catupiry que se pôde degustar em Belo Horizonte durante mais de uma década, entre os anos de 1980 e 1990, até que em mau momento a Doce Docê fechasse as portas. 

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Por tortuosos caminhos, o texto, intitulado Saudade da Coxa de Catupiry, foi cair sob as vistas da Thereza Oliveira, ex-proprietária da casa e criadora do pitéu em questão, vivendo então em Tiradentes, no interior de Minas. Resumindo a história: não tardou a vir convite, imediatamente aceito, para ir até lá, conhecer a autora e, entre goles de champanhe do bom, matar a saudade de sua obra-prima comestível. 

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Mais recentemente, veio a notícia de que a Doce Docê reabriu – e, claro, fui conferir na primeira oportunidade, estando assim em condições de atestar que a rediviva coxa de camarão com catupiry segue sendo a maravilha de antes. Quase posso afirmar que passaria pelo rigoroso crivo da minha insuperável consultora, a dona Wanda, lamentavelmente ausente já faz tempo, que haveria de aprovar também as empadas da superveniente confeitaria Avellan, das quais, apresentado ano e pouco atrás, me tornei cativo. 

Em retribuição, eu poderia, em meus domínios, lhe proporcionar um tour da boa empada de São Paulo, com escalas obrigatórias que não se resumiriam à Casa Godinho e à Doces de Laura. Entre uma e outra, haveria a dona Wanda de adorar um vagaroso, um remunerador parêntese no Martin Fierro, de cujos fornos tem saído, já faz tempo, a melhor empanada paulistana.

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