Sai no Brasil antologia do português Albano Martins

Organizada por Álvaro Cardoso Gomes, publicação de Universidade São Marcos revê trajetória de Martins, escritor que se manifesta numa linguagem trabalhadíssima e enxuta sem passar do ponto

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Por Agencia Estado
Atualização:

Albano Martins é ilustre e desconhecido. Em Portugal, vem sendo considerado um dos mais importantes poetas contemporâneos. No Brasil, somente um círculo estreito de especialistas conhece seus livros. De qualquer forma o suficiente para que o escritor, nascido em 1930 e com 50 anos de atividade poética, recebesse o título de doutor honoris causa da Universidade São Marcos, que também publica uma Antologia Poética do autor, organizada por Álvaro Cardoso Gomes. A dupla iniciativa da universidade privada deve ser notada como uma tendência que poderá firmar-se. A Unibero, por exemplo, lançou El Amor Virtual, de Pedro Salinas, no original, organizada por Julio García Morejón. Tanto a obra de Salinas quanto a de Martins vêm acompanhada de um estudo sobre os textos apresentados no volume, como se deve esperar de uma edição universitária. A introdução aos textos do poeta português foi feita por Carlos Alberto Vecchi e é uma reconstituição, pelo filtro da análise não-didática, mais clara e segura, da trajetória poética de Martins, escritor que se manifesta numa linguagem trabalhadíssima e enxuta sem passar do ponto, isto é, tão desbastada que acaba perdendo a eficácia e a poesia vira nada. Isso se dá, entre outras coisas, pela inventividade das imagens, como nestes versos: "Um mar estanque/ navega/ sob os olhos." Ou estes: "Relincha,/ e das narinas/ sai o azul em que se banha." São imagens que surpreendem mas não se esgotam num passe de mágica, exigem novas leituras e envolvem num clima de força sensual e plástica, se isso já não for uma redundância. Vitalidade - Observe-se, não há necessidade de título nem de outros versos para que se perceba a intensidade poética dos trechos citados. O primeiro é sobre o momento da criação do poema, em que transbordará o mar estanque, por meio da mão que inventa o lápis (ou do lápis que inventa a mão, a alternativa, no sentido inverso, é possível e válida) e o abismo da criação artística, tão enigmática quanto o "mar estanque" sob os olhos. A possibilidade de ver, após a feitura da obra, não é uma solução, pois o tensionamento persiste. O poema termina assim: "A mão/ desenha/ o lápis./ Devagar/ entre a cicuta/ e o mosto." Quer dizer, não há rima nem solução metalingüística, mas de modo diferente do ceticismo drummondiano, com a insinuação do prazer no vinho primitivo, áspero e vibrante e a morte, a cicuta. Uma celebração à vida, eros, inconcebível sem seu complemento de morte. O segundo, intitulado O Cavalo Cor-de-rosa, que tangencia o surrealismo em rápidas pinceladas sobre o amanhecer, ou, como faz Ungaretti no esplêndido Mattina, expõe uma festa de vitalidade cósmica da qual o homem participa na sua insignificância. Vale a pena reproduzir o texto, gracioso e exuberante ao mesmo tempo: Relincha, e das narinas sai o azul em que se banha. Na garupa, um galo de crista rosada encrespa a voz e prepara as tintas da madrugada. São estas as cores do cavalo. Que, para voar, não precisa de outras asas. É um desenho ligeiro carregado de cores fortes. Daí o impacto permanente desse e outros poemas de Martins. Não se trata de apenas mais um bom autor, vá lá, a ser conhecido por força da rotina. Pelo contrário, seus textos, como seu Pégaso colorido, voa jubilosamente no chão, e disso só os melhores são capazes. Veja-se o encerramento do poema em prosa Rodomel Rododendro e a fusão sugerida de flores e luz num clima alegre de erotismo, para o qual Vecchi chama a atenção. A pontuação e a aliteração da letra D estabelecem o ritmo em circuito com as imagens: "Dorme. Sobre ti vela um dossel tecido de flores de rododendro. Descem ainda das colinas - repara - as abelhas. Há um cortiço em cada gesto, em cada palavra. Poeira de abelhas, os teus olhos, os teus gestos. A boca. Dorme. Rodomel. Rododendro." Isolamento - É sempre lamentável o isolamento entre Brasil e Portugal na literatura. Além do nome de Martins, podem ser citados vários outros, como o de António Ramos Rosa, David Mourão Ferreira, Sophia de Mello Brayner, Herberto Helder, Ernesto Manuel de Melo e Castro (atualmente vivendo em São Paulo), etc. O conhecimento do que se faz no território do idioma é fundamental para a sua vitalidade - desse tipo de encontro as artes literárias extravasam para a corrente da vida e atingem seu objetivo pleno. Martins menciona, entre seus autores preferidos, a poetisa brasileira Cecília Meireles. Como poeta cujo ouvido se mantém em sintonia fina, ele destaca o ritmo dos poemas dela, que a propósito estão passando por uma releitura criativa feita pela mestranda em literatura Miriam Schuartz. Em entrevista coordenada pelo organizador da coletânea, o ficcionista e professor Álvaro Cardoso Gomes, o poeta Albano Martins pede "políticas ousadas" e ação empresarial para resolver o problema da precariedade das relações culturais entre Brasil e Portugal: "Só com políticas ousadas (e desburocratizantes, e descomplexadas), a nível governamental, conseguirá ultrapassar-se a situação de ´vazio cultural´ que existe (subsiste) entre os nossos dois povos. Tais políticas passam, a meu ver, pela tomada, entre outras, das seguintes medidas: a criação de incentivos (fiscais, aduaneiros), que facilitem a entrada, a promoção, a circulação e a divulgação do livro português no Brasil e do livro brasileiro em Portugal; o estabelecimento de facilidades (e, desejavelmente, de apoios) ao intercâmbio dos produtos e agentes culturais, nos diversos domínios; a criação de parcerias editoriais, etc. Diz Unamuno que não há amor sem conhecimento. É necessário - é urgente - transformar a retórica dos discursos oficiais e das boas intenções em programas de ação concreta." Antologia Poética, de Albano Martins - Organização de Álvaro Cardoso Gomes. Unimarco Editora, 145 páginas, R$ 13.

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