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Sai livro que relaciona futebol e cinema no Brasil

Em Fome de Bola, Luiz Zanin Oricchio, crítico do Estado usa razão e paixão nos momentos certos para contar a história da união das duas artes

Por Agencia Estado
Atualização:

O universo acadêmico tem se dedicado muito à pesquisa da cultura lúdica brasileira. Não são poucas, por exemplo, as teses e dissertações sobre telenovelas, música popular, futebol, cinema e carnaval, entre outros temas do nosso entretenimento cotidiano. Quase sempre elaborados sob a ótica da teoria crítica da indústria cultural ou, se preferirmos, da chamada cultura de massa, esses trabalhos, com algumas exceções, têm se dedicado à análise do fenômeno pesquisado por si só. A história, a sociologia e em alguns casos a semiologia, têm norteado a linha analítica dessas pesquisas acadêmicas. Não há dúvida de que elas são imprescindíveis. Nos levam a conhecer melhor nosso país e a formação cultural da própria sociedade. Não há dúvida também de que, em nome do rigor científico, esses trabalhos quase sempre são escritos em uma linguagem tão hermética quanto inacessível à grande maioria do público leitor. O leigo interessado, mas não afeito àquela linguagem sisuda, quase cifrada, desiste da leitura. Assim, boa parte das teses e dissertações produzidas na Universidade fica mesmo circunscrita ao universo acadêmico, ainda que publicada pelas editoras. A bem da verdade, é possível também escrever simples, de forma clara e objetiva, sem nenhum prejuízo da qualidade. Podem-se registrar os mesmos fatos, casos e análises sobre o tema pesquisado e com estilo muito mais acessível ao grande público. É o caso, por exemplo, do livro Fome de Bola, do jornalista Luiz Zanin Oricchio, do Estado, que trata do binômio futebol/cinema no Brasil. O nível de informações contidas no trabalho e a qualidade de suas análises acerca do tema estudado têm a consistência e a sensibilidade do bom pesquisador que sabe usar a razão e a paixão nos momentos certos. Mas tem também a profundidade do profissional que, de fato, sabe escrever com clareza e competência. Seu texto é límpido e preciso. Se de uma parte não deixa dúvida sobre o que quer dizer o autor, por outro lado permite ao leitor a liberdade de outras interpretações sobre suas palavras. O livro deixa fluir e estimula o pensamento crítico, sem imiscuir-se nos dogmas e maniqueísmos político-ideológicos, que tanto povoaram e ainda povoam a cultura lúdica brasileira. Aqui, o lugar-comum e as frases de efeito perderam seu espaço. O fato é que, querendo ou não (e isto nem vem ao caso), o autor de Fome de Bola tornou seu livro realmente mais democrático. Isto porque, o acadêmico exigente em sua precisão científica, o estudante do nível médio, ou qualquer outra pessoa interessada em futebol/cinema, ou só futebol ou só cinema, poderá ler seu trabalho com igual desenvoltura. A história do nosso país é o fio condutor da narrativa e análises de Luiz Zanin Oricchio. Na introdução, ele faz um levantamento da memória do futebol e do cinema no Brasil. Uma espécie de arqueologia desses dois produtos, remontando ao século 19, com a chegada de Charles Miller em 1894, trazendo consigo duas bolas da Inglaterra. Com isso, teria início o futebol no Brasil. "Era um domingo, 14 de abril de 1895, e, nesse dia, dizem os historiadores, nasceu o futebol brasileiro." O local foi a Várzea do Carmo, entre as ruas Santa Rosa e do Gasômetro, na capital paulista. Já em 1896, o omniógrafo instalado na Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, mostrava imagens em movimento, mas de forma ainda incipiente. Mesmo assim despertou a atenção das pessoas. Mas é em 19 de junho de 1898, de acordo com os historiadores, que nasce o cinema brasileiro. Este acontecimento deve-se a Alfonso Segreto, que registrou com uma pequena máquina francesa "as primeiras imagens em movimento da terra brasileira...", como registra o autor. Bem, mas se os fatos históricos se deram assim ou não, é uma discussão que tem se arrastado ao longo do tempo. Seja como for, há algo de mais significativo do que datas e locais. Como diz Oricchio, "cinema e futebol chegaram praticamente juntos ao Brasil nos últimos anos do século XIX. Logo encontraram adeptos, se difundiram, caíram de vez no gosto do público, tornaram-se populares". Os primeiros registros do futebol/cinema foram feitos nos anos 30, com os filmes Campeão de Futebol (1931), de Genésio Arruda e, um pouco mais tarde, em 1938, Futebol em Família, de Ruy Costa. Este último já era o reflexo da Copa do Mundo de 1938 disputada na França, quando se consagra Leônidas da Silva pela magia do seu futebol. Há muitos outros filmes citados e analisados em Fome de Bola. O espaço aqui é pequeno, o livro é denso e há outras questões igualmente importantes. Se a partir dos anos 30, quando o futebol realmente se populariza em nosso país e torna-se praticamente uma unanimidade, parte da inteligência brasileira o rejeitava. Lima Barreto e Graciliano Ramos, por exemplo, chegaram a se manifestar sobre suas contrariedades e desaprovação ao futebol. Este último considerava nosso principal esporte "uma importação indesejada, estrangeirismo que nada acrescenta ao Brasil", como registra Zanin Oricchio. Nosso grande autor de Vidas Secas e São Bernardo chegou a escrever o seguinte: "Temos esportes em quantidade. Para que metermos o bedelho em coisas estrangeiras? O futebol não pega, tenham certeza." Menos mal, mas o tempo encarregou-se de mostrar que Graciliano não estava certo. O futebol, orgulho nacional, hoje reina soberano na cultura lúdica do nosso país. É bem verdade, também, que este orgulho nacional foi ferido de morte, maltratado por nossos dirigentes e atletas nesta Copa de 2006. Esqueçamos, não tem volta. Que o uso político-ideológico deste e de outros esportes, dentro e fora do nosso país, sempre ocorreu e ocorre, não é, evidentemente, nenhuma novidade. Desde o governo de Getúlio Vargas nos anos 30, até a nossa contemporaneidade, este fato se repete sistematicamente. Ao tratar deste tema, a meu ver, o livro atinge o ponto mais significativo da conjunção futebol/cinema. O capítulo 3, "Batendo Bola nos Anos de Chumbo", apresenta 48 páginas de análise rigorosa e equilibrada de filmes como, Tostão, a Fera de Ouro, Brasil Bom de Bola, Pra Frente Brasil, entre outros. No tempo dos governos militares, futebol e política eram inseparáveis. Muito mais do que em épocas anteriores e posteriores. O registro que Oricchio faz do filme Pra frente Brasil é esclarecedor: "Apesar de suas notórias insuficiências dramatúrgicas, Pra Frente Brasil é um marco, uma dos poucas obras brasileiras que não se propõem a debater a utilização política do futebol. Não discute a excelência daquela seleção brasileira, nem questiona o fato de que o futebol tenha se tornado, no Brasil e em outras nações fanáticas por ele, uma expressão da cultura desses países, o que torna ridícula a disposição de torcer contra a seleção, pois seria torcer contra nos mesmos." E é assim que, em alguns momentos da nossa história, futebol e política tornam-se quase irmãos siameses. O livro ainda traz importantes entrevistas com os cineastas João Moreira Salles, Luiz Carlos Barreto, Ugo Giorgetti, Maurice Capovilla, Oswaldo Caldeira, Djalma Limongi Batista e o craque Pelé. A filmografia, como diz o próprio autor, pretende ser a mais completa possível. Ela começa em 1907 e chega a 2006 com o filme O Maior Amor do Mundo, direção de Cacá Diegues. Em síntese, não se trata apenas de um livro a mais, ou de um livro só sobre futebol e cinema. Trata-se, isto sim, de um trabalho de referência para quem se interessar pela cultura lúdica brasileira, o futebol e o cinema. Confira, caro leitor. Fome de Bola, do jornalista Luiz Zanin Oricchio. Imprensa Oficial, Coleção Aplauso, 488 páginas, R$ 9.

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