Sai livro policial acima de seus pares

Publicado em 1993, A Sereia Vermelha de Maurice G. Dantec, reflete um momento muito especial, em que o futuro da União Européia se desenhava

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Por Agencia Estado
Atualização:

A primeira coisa que se pode dizer de A Sereia Vermelha, de Maurice G. Dantec, é que o livro é absolutamente fiel ao gênero policial. Uma menina genial descobre que a mãe está metida em atividades ilegais, foge, é perseguida por capangas fortemente armados e descobre um novo mundo durante a trajetória. A segunda é que a obra é bastante atual - inclusive no sentido de que nunca surpreende por seus temas. Não se chega a falar em pedofilia, o fantasma que ronda a vida pós-internet, mas Alice, nos seus 13 anos, está aí para estabelecer a ligação entre sexo, infância e crime. Para completar, uma narrativa convencional, muitos tiros, muito sangue e viagens, preenchendo todas as atuais exigências dos editores de séries policiais, esse seguro porto da indústria do livro. Mas, apesar desse fato, de ser raramente surpreendente, A Sereia Vermelha tem algo de especial, que o coloca acima de seus pares. Tudo está muito bem amarrado, mais do que normalmente se observa no gênero. E, nesse combate moralizador, seu thriller percorre uma Europa ainda maior que a da União: Eva Kristensen, mãe de Alice e líder do bando que produz "snuff-movies" (obras pornográficas em que as mulheres são mortas efetivamente durante as filmagens), é holandesa. Hugo Throop, o aventureiro que salvará Alice inúmeras vezes, faz parte de uma organização político-libertária, que se formou nos Bálcãs e que conhece ramificações na Alemanha e França; o pai de Alice vive em Portugal; a responsável pela educação da menina é asiática, um dos principais agentes do bando criminoso trabalhou na África do Sul do apartheid, etc. Seu mundo de fato não tem fronteiras, o que amplia enormemente o leque de possibilidades, sem que isso se transforme num imenso e intragável rocambole. O livro, publicado em 1993, reflete um momento muito especial, em que o futuro da União Européia se desenhava. Poucos anos depois, Marie Darieussecq, a sensação literária francesa do verão de 1996, lançaria "Porcarias", provavelmente o primeiro romance em que os personagens já recebiam seus salários em euro, a moeda que começaria a circular efetivamente apenas neste ano de 2002. Boa parte do romance de Dantec se passa em Portugal, onde estaria o pai da menina Alice. Fugindo ao mesmo tempo da polícia holandesa, que não é capaz de lhe garantir segurança, e dos comandados de sua mãe, é para lá que Alice conduz o protetor que encontra por acaso. Mas não há uma oposição caricatura entre o caráter (e o calor) latino e a frieza do norte - aliás, quem toma decisões intempestivas normalmente saiu das regiões mais geladas. Dantec faz uma descrição cuidadosa da região, da sua luz, de seus moradores e das estradas e estradinhas que cortam o país, contribuindo para a verossimilhança que acaba por ser destroçada pelos morticínios. É possível enxergar a inteligente Alice como uma metáfora das promessas de um mundo global, marcado por uma cultura universalista. Uma universalidade colocada em perigo pelo crime organizado e também multinacional, que não se restringe a uma libertação individual, mas que responde a metas e hierarquias próprias do mundo empresarial - a dimensão "moderna" dessa organização criminosa é muito bem representada por dois elementos: a chefia feminina e a sede num país, a Holanda, que lidera os rankings de qualidade de vida. Tudo isso, na verdade, vem dentro de um pacote maior, que permite a identificação imediata com a maioria dos leitores: ou seja, a eterna luta do bem - que consegue inúmeras vitórias nas mais de 390 páginas - contra o mal, que, apesar das incontáveis baixas, insiste em seus objetivos. O fato é que Dantec reproduz grande parte dos fantasmas do mundo contemporâneo, dos medos que nos rondam. Fantasmas como a violência que parece pronta para invadir nossas vidas a qualquer momento - numa viagem de ônibus, num cruzamento de estradas, num hotel de uma pacata cidade do interior, fundada na época dos romanos. Fantasmas como a da associação entre sexo e violência, entre sexo e morte. Fantasmas como a da permanente desconfiança entre as pessoas, que se mostram prestes a negar o que têm de melhor para trair os ingênuos. Nesse sentido, Maurice G. Dantec faz perceber que os brasileiros não estão sozinhos nesse canto da América do Sul, que compartilham medos com franceses e holandeses, que os fantasmas também foram globalizados. Os perigos não são exclusividade dos países pobres, até porque a pobreza, a miséria e a criminalidade parecem ter conseguido romper os frágeis portões que protegiam a chamada civilização. Ler A Sereia Vermelha não é, portanto, nada animador nem ao menos reconfortante. Mas é uma experiência bastante coerente com o que parece, e talvez seja mesmo, a realidade a cada dia mais próxima. Serviço - A Sereia Vermelha.Romance de Maurice G. Dantec. Objetiva,392 págs., R$ 38,90

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