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"Sacra Folia" reestréia condensada

Peça da Fraternal Companhia de Arte e Malasartes é apresentada desde 1996, sempre na época do Natal. Este ano, elenco foi reduzido para cinco atores

Por Agencia Estado
Atualização:

Ao celebrar o tempo litúrgico do Advento, a Fraternal Companhia de Arte e Malasartes desembrulha o seu presépio teatral no Teatro Paulo Eiró. A peça Sacra Folia, apresentada pela primeira vez em 1996, retorna ao palco em uma condensação feita pelo autor. Adaptando-a para um elenco de cinco intérpretes, metade das figuras mobilizadas na encenação do texto original, Luís Alberto de Abreu compensou a perda de personagens com uma hierarquização racional das funções narrativas e representativas. Dos cinco narradores, três representam as testemunhas históricas da vida terrena do Messias: alegam ser descendentes de judeus, árabes e romanos. Cabe aos dois outros simbolizar a vigência contemporânea e universal da presença cristã: são os capiaus Tião Cirilo, um mineirinho, e o paraibano Wellington Severiano. A estes compete somar à História Sagrada o cabedal do romanceiro popular. São as versões abrasileiradas dos pastores que o Evangelho incorporou à cena do Natal como sinal de redenção dos humildes da Terra. Estes narradores, dotados de identidade alegórica, se encarregam de assumir os outros personagens da narrativa: a mulher de Herodes, os soldados romanos, José, Maria e os dois "guias" disputando os clientes estrangeiros recém-chegados ao sertão. Não é a plácida cena do nascimento de Jesus, contudo, que fornece a matéria para essa reescritura moldado sobre o mistério medieval. Abreu escolheu os episódios da Matança dos Inocentes e da Fuga para o Egito. O primeiro desses episódios, contido no prólogo, tem a função de portal para a travessia do tempo histórico. Vivemos ainda no tempo em que se massacram crianças e a peça nos devolve à memória as execuções sumárias no Portal da Igreja da Cadelária. Tal como as outras figuras da História Sagrada, Herodes tem muitas faces. Isto relembrado, as atribulações da fuga dos santos personagens se desdobram em peripécias do sertão nordestino à fronteira do Paraguai. As artimanhas da farsa picaresca, o linguajar bruto dos vilões e o tom a um só tempo singelo e sublime das cantigas de louvação mesclam-se nos episódios de perseguição, seqüestro e resgate do Menino. O sentido da "folia", ou seja, da festa popular derivada das representações de assuntos sacros, impregna a forma ágil da narrativa, cheia de peripécias, e o tom familiar com que todos tratam o tema sublime. O mesmo tratamento, enfim, a que os folguedos e o romanceiro popular submeteram os temas extraídos do Antigo e do Novo Testamento. Com inteira liberdade poética intrometem-se na narrativa anacronismos, estilos híbridos (o Anjo Gabriel percorre uma gama expressiva que vai do poético ao palavrão), a tradição metateatral (um dos personagens recorre a uma adaptação de um prólogo shakespereano) e a solene reivindicação, feita pelo nordestino Teité, do cumprimento da promessa da justiça cristã. É, aliás, a mesma ânsia de redenção terrena, de alimento abundante e paz corporal, que se manifesta nas falas dos pastores dos primeiros autos natalinos. Também eles deram voz, pela primeira vez na história do teatro ocidental, aos que viviam sob o jugo da corvéia. Sob a direção de Ednaldo Freire, o elenco da Fraternal Companhia destrincha com a maior clareza as sucessivas camadas de personagens. Um jogo que precisa de habilidade e traços concisos para ser compreensível é feito mais de interpretação do que de acessórios de figurinos. Em uma peça em que cada ator faz várias personagens, em que há cenas interrompidas para que se intercalem narrativas paralelas sugerindo "personalidades" para os narradores que conflitam com características das figuras bíblicas, há oportunidade para o exercício de vozes e atitudes corporais diferentes. Sem exagerar no tom cômico, com uma leveza ao que parece inspirada na celebração natalina, o travestimento se organiza de modo sereno, endereçando-se ao público em uma tonalidade de congraçamento. Singelos, os elementos cenográficos se referem aos materiais e formalizações da iconografia católica, com panos de cores primárias e acessórios que, por terem se fixado de forma emblemática nas representações populares, não devem impressionar pela novidade. Há o manto azul de Maria recobrindo o burrico moldado sobre a forma de "bumba", os uniformes dos soldados romanos tal como se apresentam até hoje nos circos e nos ciclos de festejos onde se dramatizam episódios da História Sagrada e um fundo cenográfico recortado sobre um pano azul como o dos inumeráveis presépios que, nas casas brasileiras e nas igrejas, se erigem por ocasião do Natal. A familiaridade dessas imagens, sua ligação com o recorrente e com o improvisado estão em cena para evocar a permanência de uma forma ritual de teatro. As crianças que, da platéia, torcem pelo resgate do Menino, zombam da vilã e vibram com as narrativas e artimanhas dos pícaros estão se iniciando na esperança de redenção que é o fim último de todos os autos da Natividade. Sacra Folia. De Luis Alberto de Abreu. Direção Ednaldo Freire. Duração: 80 minutos. Sexta e sábado, às 21 horas; domingo, às 19 horas. R$ 10,00. Teatro Paulo Eiró. Avenida Adolfo Pinheiro, 765, tel. (11) 5546-0449. Até 22/12.

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