Rushdie faz crítica do consumismo ocidental

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Por Agencia Estado
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Em setembro, chega às prateleiras de Nova York, Londres e Paris, em lançamento simultâneo, o novo livro do escritor britânico de origem indiana Salman Rushdie: Fury (Fúria, 264 págs.). A obra (que circula entre jornalistas numa edição especial) é um romance contemporâneo, ambientado em Nova York e Londres. Ainda não tem previsão de lançamento no Brasil, mas seus direitos de publicação já foram comprados pela Companhia das Letras. Bastante despretensioso, o trabalho consegue, combinando três referências evidentes, todas citadas pelo autor - Dr. Jekyll e Mister Hyde, Frankenstein e Pinóquio -, traçar uma crítica irônica e perspicaz das contradições que o mercado de consumo provocou nos países ocidentais. Por isso, não deixa de ser também irônico que a estratégia de lançamento siga uma tendência marqueteira do mercado editoral: autores de língua inglesa que vendem bem, produzem obras consideradas de boa qualidade e atravessam fronteiras com facilidade são publicados na França simultaneamente porque a repercussão em Paris ajuda até mesmo a vendê-los nos Estados Unidos e Reino Unido. O mesmo foi feito no início do ano com o norte-americano James Ellroy, autor de American Death Trip, que teve a primeira sessão de autógrafos realizada no Salão do Livro de Paris. Rushdie, já ganhador do Booker Prize, o mais importante prêmio para obras escritas em inglês, tornou-se conhecido no mundo inteiro depois da fatwa do líder iraniano aiatolá Khomeini que decretou sua sentença de morte, em 1989, após a publicação de Os Versos Satânicos, considerado ofensivo ao islamismo. Em 1998, o governo iraniano retirou o seu apoio à fatwa de Khomeini. Ela, no entanto, continua em vigor porque, segundo as leis islâmicas, apenas a pessoa que a editou tem o poder de cancelá-la - o que hoje é absolutamente impossível, uma vez que Khomeini morreu em junho de 1989. Num editorial publicado em fevereiro, quando a fatwa fez 12 anos, o jornal ortodoxo Jomhuri Islami afirmou que a mudança de Rushdie para os EUA (ele vive atualmente em Nova York) poderá facilitar o seu assassinato, uma vez que, na opinião do diário, "o país oferece mais possibilidades para executar esse traidor". Se oferece boas condições para seus inimigos radicais, a mudança para Nova York serviu para mergulhar Rushdie, definitivamente, no mundo pop - antes um universo que parecia compreender e dissecar (o rock é a matéria-prima de seu romance anterior, O Chão Que Ela Pisa, e ele é autor de uma canção gravada pela banda U2) como poucos, agora um ambiente que freqüenta como um despreocupado protagonista. Rushdie também faz uma ponta no filme Diário de Bridget Jones, em cartaz em São Paulo, com o best seller e político conservador Jeffrey Archer (atualmente preso). Os dois representam eles mesmo, durante o lançamento de uma obra de um autor novo, anunciada como um grande livro, mas, na verdade, uma bomba, como a protagonista não é capaz de disfarçar. Completando seu perfil pop, Rushdie dedica o novo livro a sua namorada - a exuberante modelo indiana Padma Lakshmi, que já foi capa da edição norte-americana da revista Playboy. A história de Fury começa em Nova York, onde vive o historiador Malik Solanka, que abandonou sua atividade de professor e é um incansável criador de bonecas. No verão do ano 2000, a cidade combina o calor e a umidade da estação com o da "exuberância irracional" que então vivia a economia norte-americana. "A cidade ferve com o dinheiro", escreve Rushdie. "Novos restaurantes abertos a toda hora", continua. "O futuro era um cassino, e todos estavam apostando, e todos acreditavam que ganhariam." Solanka está separado. Deixou Londres a mulher e o filho depois de uma desilusão: seu coração foi despedaçado por uma de suas bonecas, a única pela qual se apaixonara. Sim, o protagonista de Rushdie, que em muitos momentos soa um tanto autobiográfico, é uma espécie de Gepeto, o criador de Pinóquio. Mas, muito mais que o fazedor de bonecos de Carlo Collodi, que influenciou autores como o ficcionista Ítalo Calvino e o historiador Carlo Ginzburg, tem motivos para se sentir emocionalmente destruído: sua Little Brain (Cerebrinha, numa possível tradução, ou Cabeça de Minhoca, em outra, mais livre) foi absolutamente absorvida pelo mercado, saindo completamente de seu controle. A mulher de Solanka, claro, acha que sua relação com as bonecas está ligada ao fato de ele querer se relacionar com mulheres que não se expressam, não falam. E talvez ela tenha razão: todo o drama de Solanka começa quando ele decide, em Londres, realizar um programa de televisão com uma das peças que fabricou. Little Brain, portanto, será diferente das outras "mulheres" do historiador. Ele consegue um horário de fim de noite na BBC (TV pública britânica), em que filósofos conversam com sua boneca, que assume o papel de aprendiz. Para sua tristeza, contudo, o programa é um sucesso, e os mui espertos diretores da rede decidem que Little Brain deve ser mais explorada: vai para o horário nobre, em vez de intelectuais passa a entrevistar atores bonitões, vira produto, vai parar nas bancas de revista, lojas de brinquedo, cinema, livrarias (é publicada uma "autobiografia" de Little Brain que vai parar nas listas de best sellers de não-ficção). Toda uma indústria passa a explorá-la. Não à toa, aparecem no texto referências a Betty Boop e Lara Croft, duas heroínas virtuais que guardam semelhanças com Little Brain. Ela foge completamente do controle do protagonista de Fury e torna-se uma espécie de boneca-frankenstein, a segunda criatura literária que funda o romance, imortalizada no imaginário popular e na obra de Mary Shelley. Para aumentar ainda mais o desespero de Solanka, seu filho de 3 anos, que parecia gostar tanto de livros, se apaixona pela boneca. Como suportar tal alienação? O resultado é que Solanka apresentará seu lado "Mister Hyde", o lado obscuro do doutor Jekyll, do romance de Robert Louis Stevenson. Sobre esse tripé, ainda surgem outras referências ao mundo pop. Solanka vive num apartamente em que foram rodadas cenas de Maridos e Esposas, do cineasta Woody Allen, o país está mergulhado numa disputa pela presidência entre Bore e Gush e John Travolta também se faz presente. E por que o livro se chama Fúria? Um trecho do romance, que contém muitas sugestões autobiográficas (Rushdie não perdeu completamente o controle sobre a leitura de Os Versos Satânicos?), pode a ajudar a entender a intenção do autor e imaginar o conteúdo do romance: "Da fúria, nascem criação, inspiração, originalidade, paixão, mas também violência, dor, destruição pura e destemida."

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