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Rumos da política cultural

Mainstream, de Frédéric Martel, discute o lugar dos EUA na indústria do entretenimento

Por Teixeira Coelho
Atualização:

E a questão de fundo em Mainstream é a que habita aulas acadêmicas e gabinetes de ministros há décadas, aqui e longe daqui: por que os EUA dominam o mercado da cultura no mundo e o que fazer para compensar essa presença, se isso for possível e desejável? A pergunta é velha e poderia afastar o leitor que não mais suporta as respostas simplificadas impostas pela ideologia congelada. A resposta de Frédéric Martel, no entanto, é menos usual. Não é uma descoberta, porque seu conteúdo sempre esteve disponível aos que mantinham os olhos abertos e não wide shut, como fazem os ideólogos de plantão.Sua resposta é convincente. As causas da ascendência americana na cultura são inúmeras mas se traduzem (em palavras dele e minhas) na imagem de um foco onde se cruzam a pesquisa na universidade com o apoio do mercado (aqui visto como a marca do Demo), financiamentos descentralizados à cultura, uma contracultura valorizada (consagrada por Andy Warhol, Lichtenstein e outros), a energia gerada pela mobilidade social, o lugar simbólico ocupado pela figura do artista (do qual o star system hollywoodiano não é o único exemplo), a vivacidade das comunidades étnicas integradas ao país (apesar da discriminação variada, etc.), a sorte histórica trazida pela desgraça da 2.ª Guerra Mundial que para lá levou punhados de gente criativa de todos os lugares. Em outras palavras: formação, tolerância, busca da inovação, aceitação dos riscos, ousadia.Esse é um pedaço da foto. No outro estão, claro, os grandes estúdios e as grandes gravadoras, com seus excessos e desvios. Mas, o império americano não é mais tão americano, a chave de leitura tem de ser outra: no cinema, a Columbia hoje é japonesa; na música, ao lado da americana Warner estão a EMI, que é britânica, a francesa Universal, a japonesa Sony. Até a Random House, gigante do livro, agora é alemã. Por que, mesmo assim, o predomínio "americano"?O sistema como um todo não é mais um conglomerado de oligopólios e, sim, uma constelação feita deles e de uma miríade de independentes, num modelo dinâmico que privilegia a variedade mais que a suposta homogeneidade, com alta tecnologia e complexidade relacional. Esse modelo, destaca Martel, é formado por milhares de atores sociais autônomos que, embora perseguindo objetivos próprios e concorrentes entre si, geram um sistema social de marcada coerência, força e estabilidade - como as doutrinas liberais (no sentido anglo-saxão) diziam que gerariam. Ao lado do colosso americano, a China, apesar de seu "capitalismo autoritário", marca passo. O autor sugere o motivo: só o mercado (coordenado, digo eu) está preparado para lutar contra o mercado e a China e seus epígonos ainda não acreditam nisso. Como tantos, procuram conter a ação dos vizinhos em vez de criar as mesmas condições cultivadas pelos americanos para que seu sistema fosse o que é.Martel lida com números e explicações rápidas, por opção não discute os conteúdos - que explicariam boa parte do fenômeno americano. Mas destaca pontos importantes, como o fato de a França produzir cultura para os franceses, a Índia para os indianos, a China para os chineses (é a tal busca das raízes) enquanto os EUA produzem para o mundo... O livro é pouco mais que um aglomerado de descrições isoladas: Hollywood, Bollywood, Miami como a capital da cultura latina, a Globo e as novelas, o fenômeno Al Jazeera... No conjunto, é como um desses (bons) dossiês que The Economist costuma organizar: superficial e pertinente. Mainstream, para o autor, significa a cultura de mercado, o contrário da contracultura e da arte. O título da edição francesa original revela melhor o tema do livro: Mainstream: pesquisa sobre a cultura que agrada ao mundo todo. O espírito marqueteiro e ideológico em vigor no Brasil propôs, para a edição daqui, A guerra global das mídias e das culturas. Se é para apelar, eu proporia A guerra global entre as políticas culturais, destacando como políticas abertas e ilustradas levam àquilo que discursos políticos de vista curta jamais conseguiram (além de enterrar as culturas que dizem proteger). Sob esse aspecto, o livro fornece material para a análise dos rumos da política cultural e, agora, da "economia criativa", no Brasil ainda dominada, como nunca antes, pela discussão torpe sobre a "imoralidade" do mercado ou do uso de recursos públicos pela iniciativa pessoal e privada, ou sobre a prioridade que se deve dar à busca da alma e das raízes brasileiras. De resto, não é só os EUA que oferecem à cultura essa dinâmica ampla que beneficia todo o país: na Alemanha existem 19.000 fundações para 14.000 mil municípios e também ali a liberdade e a mobilidade da cultura, longe do autoritarismo do Estado, do capitalismo ou outro sistema , também movem suas montanhas.  

TEIXEIRA COELHO É CURADOR DO MASP, E AUTOR DE O HOMEM QUE VIVE (ILUMINURAS), ENTRE OUTROS TRABALHOS

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