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Coluna do escritor e arquiteto Milton Hatoum sobre literatura e cidades

Ruína total

Paris, março, 2016

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Por Milton Hatoum
Atualização:

Querido amigo:

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Somos os penúltimos sobreviventes da caligrafia? O diabo é que eu preciso usar uma lupa para ler tua caligrafia miúda e apertada. 

As notícias daqui não são nada boas: milhares de refugiados vegetam em tendas e contêineres da “Selva”, as novas favelas francesas. Na década de 1950, meu pai chegou a ver favelas parisienses, onde moravam os argelinos, que fugiram da luta anticolonialista. Depois, os moradores dessas favelas foram transferidos para as “bidonvilles”: a arquitetura feia do subúrbio pobre, o urbanismo da solidão e da tristeza. 

No começo deste mês, manifestações enormes ocuparam as ruas de Paris e de várias cidades francesas; não eram protestos contra o terrorismo, e, sim, contra a reforma da Lei do Trabalho. Centenas de milhares de manifestantes – estudantes e trabalhadores – à esquerda do Partido Socialista. Não menos irônico é o que está acontecendo no Brasil. Vi uma foto da convenção do PMDB e ri “aux éclats”: sonoras gargalhadas. Ri para não ficar deprimida com a visão de três chefões juntos: o presidente do partido entre os presidentes da Câmara e do Senado, investigados por crimes gravíssimos. Os três davam um sorriso fraudulento, um sorriso que engana os brasileiros mais desinformados. É verdade que esse vigarista da Câmara – o Jesus.com das contas secretas na Suíça – vai presidir as sessões do processo de impeachment da madame Rousseff? Se for verdade, será um... Diabo, não encontro a palavra em português! Voilà: descalabro. 

A Suprema Corte e o povo brasileiro vão permitir esse descalabro, essa ruína total? 

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Sei que tu adoras a França e a cultura francesa, mas, às vezes, tu exageras, mon cher ami. Observo com um olhar mais crítico o meu país, cujo passado colonialista não é nada glorioso. Há poucos anos, os franceses elegeram o nefasto Sarkozy: arquiteto da coalizão militar que destruiu a Líbia e matou milhares de pessoas. E o que dizer da ascensão do Front National, um partido abertamente xenófobo e racista? Aprenderam a lição de Gobineau, tão enraizada na Europa... Tudo isso dá calafrios. Mas é verdade que o magistrado francês jamais admitiria um escroque na presidência da Câmara. Impensável numa verdadeira democracia! 

Mas chega de política! Merci pelo envio dos poemas de Ana Martins Marques (O Livro das Semelhanças) e Sonia Barros (Fios). Duas poetas talentosas. Enquanto houver um punhado de leitores sensíveis e exigentes, a poesia lírica resistirá. Aliás, tu só me falaste de poesia na tua última carta, postada ali perto do Largo das Batatas, onde fui tua vizinha por algum tempo. E como são as coisas... Tu sentes saudades das pracinhas do Marais e da Praça de Furstenberg, onde fica o pequeno museu Delacroix, o teu amado pintor orientalista. Pois eu morro de saudades do Largo des Pommes de Terre, do Marché de Pinheiros e da Gare de la Lumière, a linda Estação da Luz. E por falar em luz: que tristeza o incêndio do Museu da Língua Portuguesa! Essas labaredas são metáforas de algum sinistro grandioso? 

Ainda bem que sentimos saudades do que não é nosso. Como é saudável descobrir coisas que, aparentemente, não nos pertencem, admirar e vivenciar a cultura dos outros, escondida em nós mesmos, na nossa ancestralidade. Aceitar as diferenças não é sinal de tolerância? Intolerância gera ódio e a distância entre o ódio e a violência é mínima. 

Tu te lembras dos versos que a gente lia na nossa juventude em Paris? “Sou mais variado que uma multidão de acaso,/ Sou mais diverso que o universo espontâneo,/ Todas as épocas me pertencem um momento,/ Todas as almas um momento tiveram seu lugar em mim.” 

Mas de lá pra cá nossos corações ensombreceram um pouco. Outro dia, reli um poema de Pessoa/Álvaro de Campos: “Volta amanhã, realidade!/ Basta por hoje, gentes!/ Adia-te presente absoluto!...”. 

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Beijos da petite Françoise, a Chiquinha parisiense. 

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