Romance policial, com cenário africano

Agência n.º 1 de Mulheres Detetives, de um escocês criado o Zimbábue Alexander McCall Smith, se passa em Botswana, que tem o maior índice de contaminação por HIV do mundo

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Por Agencia Estado
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Depois de resolver mais um caso, Preciosa Ramotswe pergunta: "Por que fez isso? Diga-me só como foi que pensou que poderia escapar impune dessa história." "Tomo conta dos meus pais", responde Salomon Moretsi. "E tenho uma irmã com uma doença que está matando todo mundo hoje em dia. A senhora sabe do que eu estou falando." Moretsi, que tentara receber mais de uma vez por um acidente de trabalho, está falando da aids, na única menção em Agência n.º 1 de Mulheres Detetives (Companhia das Letras, 240 págs., R$ 29) à doença. No país de Preciosa, Botswana, encontra-se o maior índice de contaminação por HIV do mundo. Lá, 36% da população adulta tem o vírus, o que significa 290 mil pessoas - toda a população de Botswana está em cerca de 1,6 milhão de habitantes. E 24 mil morreram, em 1999, em decorrência da aids. "Os batswanas (como são chamados os habitantes do país no plural) não gostam de falar muito do assunto", conta o autor do livro, o escocês Alexander McCall Smith, em entrevistaà Agência Estado. A obra freqüenta listas de best sellers nos EUA - depois de ter sido lançada originalmente por uma editora pequena na Escócia - e já teve três seqüências (em abril, sai o quinto livro da série). "Tentam viver uma vida normal; o governo está fazendo um esforço para comprar o coquetel." O livro de McCall Smith sai por uma coleção de romances policiais, mas não se enquadra no padrão do gênero. "Na América", começa ele, e se corrige, pedindo desculpas ao repórter brasileiro e adotando um discurso "geograficamente correto", "na América do Norte" foi publicado tanto dessa forma quanto como um romance tradicional. "Por coincidência, minha personagem é uma detetive, mas não é um romance padrão do gênero." Preciosa, ou Mma Ramotswe, como é tratada normalmente durante a narrativa, não tem por hábito resolver crimes violentos - em geral, se envolve com pequenos problemas cotidianos, que estão longe de serem o que move obras de autores da coleção. Uma mulher que desconfia do homem que se apresenta como seu pai, outra cujo marido é engolido por um crocodilo, um empresário que considera justo pagar uma indenização por um acidente de trabalho que não ocorreu, um indiano que quer vigiar a filha - esses são os clientes de Ramotswe. O caso mais complexo envolve uma criança raptada para um ritual de magia. Será o único caso de homicídio da detetive que foi chamada de Miss Marple africana? "Em comparação com outros países da África", diz McCall Smith, Botswana tem uma história "anormal". Tradições tribais, questões históricas e étnicas favoreceram a instauração de um regime parlamentar estável, com eleições regulares. Num certo sentido, pode-se dizer que Botswana teve a sorte de a exploração de seus diamantes só se demonstrar viável depois da descolonização. Deixemos o entrevistado de lado para dar voz ao site da CIA, a agência de informações do governo norte-americano: "Desde a independência, em 1966, Botswana manteve uma das maiores taxas de crescimento do mundo." Ainda segundo a CIA, graças a uma disciplina fiscal rígida e a uma notável administração, Botswana deixou de ser um dos mais pobres países do mundo. "Duas agências classificam o país como o de menor risco de investimento na África. A exploração de diamantes alimentou muito da expansão e ainda hoje responde por mais de um terço do PIB do país e por 80% das exportações." Na verdade, McCall Smith acredita que o romance é uma boa forma de apresentar um país. E Botswana é seu país de eleição. O escocês foi criado no Zimbábue, outro país do sul da África, vizinho de Botswana (que fica ao norte da África do Sul e a leste da Namíbia). Desde 1980, uma vez por ano, pelo menos, passa por Gaborone, a capital do país e onde se passam as principais histórias do romance. McCall Smith, professor de Direito numa universidade escocesa, é também autor de vários trabalhos publicados sobre o sistema legal do país africano. "Acho que meus romances mostram essa sociedade em termos positivos", diz McCall Smith. "Procuro ressaltar o melhor lado dessas pessoas." Uma visão que comporta um bom humor refinado, mas que também é capaz de flertar por vezes com a escatologia - pensando no que um médico poderia revelar de negativo sobre um paciente, Preciosa conclui que o maior problema seria tornar público um caso de prisão de ventre. E raciocina: se todos os que têm prisão de ventre se unissem, poderiam formar um partido, com chances de chegar ao poder.

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