Romance perverso banaliza terror

Obra de Yann Martel é ofensiva e desajeitada ao examinar o Holocausto

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Por MICHIKO KAKUTANI
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O romance A Vida de Pi, de Yann Martel, publicado em 2001, era uma fábula excêntrica e encantadora - em parte uma meditação filosófica sobre Deus, e em parte uma aventura infantil sobre a viagem de um menino pelo oceano a bordo de um bote salva-vidas na companhia de um tigre chamado Richard Parker.Infelizmente, tudo o que esse primeiro livro tinha de encantador a nova obra de Martel, Beatrice and Virgil (Beatriz e Virgílio, que deve sair aqui em agosto pela Nova Fronteira), tem de ofensivo e mal concebido. Também nele os animais são personagens principais. Também ele é escrito numa prosa enganosamente leve. Criado como parábola semelhante à Revolução dos Bichos, é uma alegoria sobre o Holocausto na qual o trágico destino dos personagens que dão título ao livro - a mula Beatrice e o macaco Virgil, ambos animais empalhados num ateliê de taxidermia - é visto "através do trágico destino dos judeus".Martel tenta se distanciar um pouco de sua estratégia narrativa ao atribuir a história de Beatrice e Virgil a um dramaturgo amador, que lamenta a morte das espécies animais em todo o mundo e pode na verdade ter sido um colaborador do nazismo. Seja como for, sua história tem como efeito a banalização do Holocausto, usado como metáfora para evocar "o extermínio da vida animal" e o sofrimento de "criaturas perdidas" que "não podiam falar em defesa própria".O leitor é encorajado a ver os animais empalhados Beatrice e Virgil, que foram submetidos à tortura, à fome e à humilhação, como substitutos dos judeus, e comparar as terríveis coisas que eles testemunharam - às quais eles se referem como "os Horrores" - com as atrocidades cometidas pelos nazistas.Quando A Vida de Pi recebeu o Man Booker Prize em 2002, numerosos comentários apontaram que o romance ecoava um livro de Moacyr Scliar, intitulado Max e os Felinos (publicado pela editora gaúcha L&PM no ano de 2001), que conta a história de um jovem que deixa a Alemanha nazista e vai parar num pequeno barco a caminho do Brasil na companhia de uma onça. Martel reconheceu indiretamente sua dívida numa nota do autor, na qual ele agradece a Scliar pela "inspiração", mas apesar de aparentemente ter emprestado do brasileiro a premissa de seu livro, ele transformou essa ideia numa obra própria, bastante diferente e original.Desta vez, os empréstimos solicitados - ou, na melhor das hipóteses, as homenagens prestadas - a Beckett não servem a um fim convincente. Em vez disso, são outro elemento desajeitado neste romance desapontador e muitas vezes perverso. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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