Romance faz sem-terra e fazendeiros acertarem contas no céu

Em ?Os Guerreiros do Campo?, publicado pela editora Mandarim o escritor Deonísio da Silva inspira-se no MST e traça perfil do País

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Por Agencia Estado
Atualização:

Os Guerreiros do Campo é um exemplo de que a ficção pode ensinar mais sobre a verdade dos fatos do que muita notícia de jornal. Mesmo que a questão esteja nas primeiras páginas, como é o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra, o MST. Foi esse o tema que Deonísio da Silva resolveu fuçar no romance que acaba de sair pela Mandarim, um tema árduo que ele aborda de maneira inusitada com a chegada no céu ao mesmo tempo dos corpos dos sem-terra e dos fazendeiros - a hora do ajuste de contas dos atos cometidos nesta vida. Para um tema tão árduo e apaixonado, Deonísio aborda política e politiqueiros, incendiários e vítimas, traidores e traídos, corruptos, aproveitadores e os desvalidos com um sarcasmo inesperado. Ele faz uma leitura triste, irônica, original e muito engraçada dos fatos que marcaram os últimos anos. E traça uma história imperdível do Brasil contemporâneo, a história de 500 anos do Brasil num romance de 191 páginas. Muitas vezes ele sai em defesa da fazendeira Camila, mas em seguida retrocede - e faz tudo tão bem que ao nos divertir ele próprio se diverte. Ele diz que é isso mesmo. "Por força do nosso passado jesuítico somos maniqueístas no Brasil, onde se travou uma guerra mundial e a inocência foi vencida pela maldade ainda nos primeiros séculos". Um rio de sangue encharca a nossa história, agora revista. Genocídio de índios, escravidão de negros, sofrimentos inauditos impostos aos imigrantes. "E no entanto, o Brasil desde o começo foi dado de presente a 13 donatários, os tais capitães hereditários. Com tanta terra e tão poucos donos, 500 anos depois do Descobrimento os sem-terra são a prova mais viva de que ela foi mal distribuída. Como povo, somos vítimas e cúmplices de nossas desgraças. Por isso mesmo procurei não ser maniqueísta", ele diz, "a verdade não está inteiramente com os sem-terra, mas muito menos com os fazendeiros". Deonísio aceita a divisão embora tenha escolhido seu lado: o dos mais fracos. "Sabendo de antemão que nenhum dos guerreiros do campo é santo", ressalva. Os personagens ele descreve com os sentimentos, nem com o que leu nem com o que ouviu. "Quando o movimento começou, armei o olhar. Sou do Brasil meridional, onde o movimento dos sem-terra começou. Aquelas pessoas tornaram-se personas e ficaram na memória. Não vão morrer nunca. Todas as mulheres do século 19 morreram, Capitu, Iracema, Bertoleza, não. Justamente elas, que nunca existiram, são eternas. Tudo que é real é muito efêmero. Meus guerreiros do campo vão permanecer." Um dia Deonísio viajava pelos campos do Rio Grande do Sul quando viu centenas de barracos pretos sitiando uma fazenda. O dono estava morrendo. A fazendeira veio suplicar aos sem-terra que adiassem a invasão, deixassem seu marido morrer primeiro. Foi nela que o escritor se inspirou para criar a bela fazendeira de 50 anos, uma Vera Fisher latifundiária e exuberante. "Primeiro as personagens femininas, depois as masculinas", ele privilegia. "Em guerras e conflitos as vozes femininas são quase sempre apagadas". O processo que ele adotou foi observar o mundo à luz das suas leituras e vivência. "Favelados louros, de olhos azuis, rondando fazendas com altivez e sem arrogância. Não pediam nada. Ao contrário, estavam na posição de receber súplicas de uma grande proprietária, e atendê-la. Podiam invadir a fazenda naquele momento. Mas o lider propôs ao bando organizado e todos acataram, que aquilo não era armadilha, que tão logo o homem morresse, eles se instalariam na propriedade." O moribundo queria apenas uma ilusão antes da última. Os sem-terra lhe concederam. O resto ficou com São Pedro, que entra logo no princípio do livro, recebendo a todos no céu. É um espelho documental do Brasil. Deonísio fica feliz em saber que as pessoas confundem real com ficção. "Ficção é isso mesmo, desde sempre. Mesmo Dante inspirou-se em seus vizinhos e amigos, na namorada, e até em seus desafetos". Ele adora os escritores documentais. É devoto de Graciliano Ramos - "não o de Vidas Secas que engana o leitor ao mostrar que a seca é o drama quando o drama é o latifúndio" - mas o de São Bernardo mostrando os estragos que a propriedade faz na alma, vide o personagem Paulo Honório. "Os sem-terra, quando vencem, se transformam todos em Paulo Honório - têm a terra e lhes falta tudo", diz Deonísio, que não queria repetir nenhum escritor. Mas ao contráro dos colegas, confessa a influência descarada pelos contemporâneos como Jorge Amado, Rubem Fonseca, Érico Veríssimo, Josué Guimarães, Pagu, Lygia Fagundes Telles. Em Guerreiros do Campo há um persongem , Gregório, que ninguém sabe como foi parar às portas do céu para o julgamento. Deonísio não diz como ele morreu. "Aprendi isso com a Lygia, que nunca diz tudo". Deonísio também lê teologia. Lê encíclicas como se fosse pároco de aldeia. Seria por isso que o romance começa às portas do céu? "Quis fazer uma metáfora. Os sem-terra acham que estão às portas do céu quando chegam à entrada de uma fazenda. É um grande engano. Agricultores europeus ou australianos quase nunca arrumam namoradas. Quando a menina descobre que o sujeito vive em fazendas ou propriedades rurais o amor murcha de repente." Todos querem viver nas cidades. Não é preciso exagerar como no Brasil onde todo mundo vive em 13 cidades. "Mas o problema da terra é bem mais complexo do que simplesmente ter a terra. No mundo em que vivemos, a seita dos simples não tem vez na terra. Não é só ter terra, jogar a semente ali, limpar o mato que cresce e depois colher. Insumos, fertilizantes, técnicas, máquinas, silos, etc... E principalmente saber fazer as coisas. Um desempregado urbano não aprende isso de um dia para o outro". A fazendeira Camila é alienada mas não é totalmente má. "E olha que eu acredito na natureza do mal", ele diz. "Ela tem compaixão pelos sem-terra, declara-se socialista e a favor da reforma agrária, desde que não comece por sua fazenda. Ela gosta muito de ler e pensa vagamente que os sem-terra não lêem porque não querem. Ela aprendeu a ler na fazenda, porque eles não leram em casa? Várias leitoras me escreveram pela Internet para dizer ´seu danado, Camila sou eu.´" Há muitas Camilas no Brasil e no mundo. Há muito cardeal de voz fininha como aquele que Deonísio retrata no livro. Ele diz que antes de pensar em fazendeiras ou sexualidades ilegítimas deixou-se levar pela imensa compaixão feminina. Camila é a síntese das mulheres que Deonísio vem observando pela vida. Incluindo Santa Teresa D´Avila, a mística que se apaixonou por Jesus e por São João da Cruz, tema de seu romance anterior, Teresa. "Saltei da Tereza para os sem-terra proque ambos são místicos", diz. Ex-seminarista, Deonísio se viu privado da presença feminina durante muitos anos, antes de se casar com Soila e tornar-se pai de Manuela. E o que mais o emociona nas mulheres é essa compaixão pelos outros, pelo mundo. "Meus personagens em geral fazem por merecer compaixão. Não é generosidade minha, eles merecem". Mesmo os reais. Ele se refere a Itamar Franco. "Pobrezinho, não deve ter tido adolescência, fica aí cantando as moças. Itamar mandou prender alguém? Não, está namorando. Se nossos ditadores namorassem quem sabe teriam amolecido o coração." Esse Brasil, Deonísio quer que o mundo leia. "Seria bom se o romance fosse traduzido". Os sem-terra dominam um território maior do que a Dinamarca no Brasil. Mas não vivem como os dinamarqueses. Se entretanto proclamassem a independência teriam um país maior do que algumas nações européias. O Cecílio Rego de Almeida tem uma fazenda no Pará maior do que a Holanda. E um fantasma, no mesmo estado, tem outra maior do que a Bélgica. "Se eu fosse fazendeiro e estivesse cuidando da propriedade da minha família amealhada há séculos não deixaria os sem-terra tomarem conta dela, não. Eles têm de fazer o que o governo não faz: discernir o que é improdutivo do que está produzindo", diz Deonísio da Silva, 50 anos, professor na Universidade Federal de São Carlos e escritor o tempo inteiro não defende nenhuma tese em Guereiros do Campo. "Conto uma história de amor", diz. Mas as entrelinhas mostram que o Brasil está acorrentado no porão da História. "Faz 50 anos que é preciso fazer a reforma agrária mas ninguém faz. Enquanto isso as pessoas estão mrorendo de fome, nas guerras do varejo do tráfico, no abandono, sem escola, sem remédio, sem nada. Sem justiça, também." "Descendo de imigrantes portugueses e italianos. Meu pai foi operário da Companhia Siderúrgica Nacional, em Siderópolis, Santa Catarina. Cavou carvão e comprou terra no Brasil meridional - era o Brasil de Getúlio Vargas. Estou do lado dos sem-terra para o que der e vier - o problema maior deles é que não sabem, em sua maioria, trabalhar a terra. Quanto a mim, como disse João Cabral, "a vida de cada dia, cada dia hei de comprá-la." Considerado um dos bons escritores brasileiros, Deonísio compra a vida escrevendo sem parar e quase não tira férias. Tem mais de 20 livros publicados. Os três últimos romances, Avante Soldados, Para Trás, A Cidade dos Padres e Teresa, eram históricos, e só o último vendeu 20 mil exemplares. Mal terminou Os Guerreiros do Campo partiu para Velório no Campus, sobre a morte - trágica e ao mesmo tempo tão divertida. "Na minha infância, os velórios eram uma festa. Eram caseiros, havia alguns amassos, amores proibidos durante os velórios, rebentavam risadas abafadas aqui e ali de vez em quando, eu tinha a impressão de que o morto se sacudia no caixão se o caso era muito engraçado". Essa morte tragicômica transparece em Guerreiros do Campo na cena do moribundo que não quer morrer. "Aconteceu de verdade", ele diz. "Eu era coroinha, fui com o padre levar os santos óleos a um moribundo e ele gritava, olhando arregalado para todos que o rodeavam, "eu não quero morrer, por que só eu morro e vocês não? Eu quero viver como vocês".

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