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Romance explora as relações humanas a partir de sociedade regida pelo tráfico

Núcleo do livro de Juan Gabriel Vázquez é a breve amizade entre um professor e o ex-detento com quem jogava bilhar

Por WILSON ALVES-BEZERRA
Atualização:

“Li em algum lugar que um homem deve contar a história de sua vida aos quarenta anos.” Essa citação quase literal do romance O Poço (1939), do uruguaio Juan Carlos Onetti, serve de mote para o colombiano Juan Gabriel Vázquez dar início às memórias de Antonio Yammara, professor de Direito, nascido em Bogotá nos anos 1970, cuja infância foi marcada pelo suntuoso jardim zoológico do traficante Pablo Escobar e outras lembranças do narcotráfico.

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Eladio Linacero - o protagonista de O Poço - pouco tinha a contar: apenas uma malograda relação sexual com uma amiga da adolescência e as tentativas frustradas de superar aquele fracasso. Prevaleciam a descrença no mundo e a falta de sentido. Dizia ele: “Esta é a noite; quem não conseguiu senti-la assim, não a conhece. Tudo na vida é merda, e agora estamos cegos na noite, atentos e sem compreender”. Há quem tenha associadoÉ possível compreender essa desistência ao clima imperante no final dos anos 30, com a ascensão do nazismo e a eclosão da 2.ª Guerra.

O pesadelo da História, além da chegada aos 40 anos, também são o motor do livro de Juan Gabriel Vázquez. Mas o advogado Yammara mantém um traço juvenil diverso daquele de Linacero: sua crença numa pedagogia da História. Ele se propõe a contar uma experiência traumática “com a plena consciência de que esta história, como se alerta nos contos infantis, já ocorreu antes e voltará a ocorrer”. Com essa citação do narrador de Peter Pan, Yammara se mostra dono de seu relato, e não refém dele, e isso faz toda diferença para a escrita das suas memórias. As certezas lhe limitam o olhar.

Se para Eladio Linacero o desafio era fazer com que seus sonhos e ideais ocupassem um lugar no mundo, para Antonio Yammara a questão é decifrar os enigmas de sua vida pessoal, cujas explicações estão imediatamente dadas pela história de seu país. Linacero escreve um romance fragmentado, vacilante; Yammara, quase uma história de detetives.

O livro de Vázquez propõe um acerto de contas com a história nacional e a memória pessoal; é uma investigação que busca a construção de um sentido: as relações que permeiam uma sociedade cuja regulação está pautada pelo tráfico de drogas ou por sua memória, constituída pela vida cotidiana e pela imprensa. O que poderia ser apenas parte da lembrança de um homem ganha os contornos trágicos da história coletiva. “Demoraria (...) para admitir de novo que as notícias do meu país invadissem a minha vida”, diz um traumatizado e amedrontado Yammara, a certa altura, tentando se livrar do telejornal, substituindo-o por algum seriado norte-americano.

O núcleo do romance é, pois, a evocação, aos 40 anos, da silenciosa e breve amizade entre o protagonista e Ricardo Laverde, ocorrida nos anos 90, quando Yammara, recém-formado, começava sua carreira como professor. Laverde era seu parceiro de sinuca, um ex-detento taciturno que, após 20 anos na cadeia, escolheu o bilhar como forma de estabelecer laço social. Apostava dinheiro e perdia sempre. Um dia, após escutar uma fita Basf que lhe chega misteriosamente às mãos, é alvejado na companhia de Yammara - que ignora tudo sobre o passado e presente do amigo, ex-traficante de drogas.

Laverde morre e Yammara sobrevive, embora o trauma o acosse. E com a perspicácia do cão que corre em direção ao próprio rabo - tamanha sua cegueira em relação ao que está em jogo na morte de Laverde -, ele busca decifrar o enigma do acontecimento. Esta reconstrução é o que constitui suas memórias.

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A importância do livro reside nos temas por ele discutidos e na contemporaneidade do relato. A infantilidade de Yammara - jovem melodramático, espectador de seriados, homem que cita Cortázar e Onetti, mas que parece mais inclinado a Peter Pan e Pequeno Príncipe - é marca importante do romance e de nosso tempo. A evocação do passeio furtivo da infância no zoológico de Pablo Escobar é eloquente. O leitor se perguntará se não há outra forma de enfrentar esta violência que não o acossamento e o medo. Não parece haver resposta pacificadora.

Para o leitor brasileiro, cabe a nota de que a tradução de Ivone C. Benedetti apresenta uma escrita fluida de quem sabe lidar com a linguagem, mas esbarra na falta de intimidade com a língua espanhola, deixando-se trair pelo automatismo irrefletido de algumas escolhas. Já o título do livro - El Ruido de las Cosas al Caer - evoca a queda do avião que mata a esposa de Laverde, a queda de Laverde e Yammara (conforme trecho ao lado) e tantas outras quedas ao longo do romance. Pois tais quedas, sempre estrepitosas, são abafadas, quase silenciadas pela escolha da tradução, que transforma o que seria “O barulho das coisas caindo” (em espanhol “ruído” recobre ampla gama sonora) no quase silencioso “O ruído das coisas ao cair”. A sintaxe e o sentido também ficam prejudicados em alguns momentos, como quando um homem se pergunta, em estranho português: “- Que culpa eles têm de nada”, no lugar do que seria simplesmente “Eles não têm culpa de nada” (“Qué culpa tienen ellos de nada.”) Entretanto, tais deslizes não impedem a leitura e fruição do novo romance de Juan Gabriel Vázquez, e tampouco o diálogo que o livro pode estabelecer com o trauma brasileiro pela violência urbana.

WILSON ALVES-BEZERRA É TRADUTOR, PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE LETRAS DA UFSCAR E AUTOR DE DA CLÍNICA DO DESEJO A SUA ESCRITA (MERCADO DE LETRAS/FAPESP)

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