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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Rindo durante o naufrágio

Rir na bonança é opcional. Na tragédia é imperativo. O problema é que se trata de um desafio e tanto

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Nós precisamos de humoristas mais do que nunca. No meio de uma tragédia?, podemos nos perguntar. Especialmente no meio da tragédia! – afirmo sem medo de errar. Rir na bonança é opcional. Na tragédia é imperativo. O problema é que se trata de um desafio e tanto. Bolar uma piada é muito fácil. Difícil é fazê-la ter graça. No meio da tristeza, então, tudo se complica. Qualquer um consegue umas risadas contando um caso sobre seus filhos no meio de uma festa de criança, mas é preciso talento para ser o piadista de velório, aliviando um pouco a dor dos enlutados.

Humor ajuda a enfrentar a pandemia Foto: Epitácio Pessoa/Estadão

Fazer troça com o falecimento em si ou rir da dor alheia obviamente estaria fora de questão. Mas rir da ironia da vida e da finitude humana nos ajuda a olhar de frente para a indesejada das gentes. Lembrar casos engraçados envolvendo o defunto retira um pouco a força daquela perda. Num artigo recente, o comediante Gregório Duvivier expunha sua crise pessoal por ser um comediante no meio de nossas tragédias nacionais, que comparava ao naufrágio do Titanic. Diz a lenda que os músicos continuaram tocando enquanto o navio afundava, mas coitado do comediante que tentasse sequer fazer uma piada. A música seria um acompanhamento bem-vindo para a tragédia. A comédia, não. Está certo, mas só em partes. De fato, a música, com sua carga emocional, pode ser uma boa guarnição para as lágrimas. Ouvir canções tristes, por exemplo, é um remédio universal para a dor de cotovelo. É como se as melodias melancólicas e letras tristes nos lembrassem de que não estamos sozinhos. Se o humor, por sua vez, não vai bem com o pesar, isso se deve à sua característica oposta à da música: a verdadeira piada é isenta de emoção. Ela não combina com a tristeza, mas de resto também não se aconchega à raiva, ao medo, ao desespero, porque seu poder é o de sobrepujar, ainda que temporariamente, qualquer emoção. A anedota bem armada, precisa, apela tão bem à razão que esta cala os afetos, trazendo alívio na forma de risada. Na dor o comediante não é um companheiro, é um antídoto. Se essa função do humor não bastasse, ele é um meio perfeito para apontarmos os absurdos que nos cercam. O cientista Konrad Lorenz, famoso por dizer que não levamos o humor suficientemente a sério, defende que ele tem a capacidade de apontar defeitos para as pessoas cujos ouvidos estão surdos a outros tipos de apelo da razão. “Em outras palavras, é o tipo certo de sermão hoje em dia”, afirmou há mais de cinquenta anos. Em meio à irracionalidade de nossos tempos atuais, esse poder do humor é ainda mais necessário meio século depois. Sim, extremistas de um lado e de outro podem se incomodar com os chistes (mas até aí, que outro apelo os demoveria de suas posições inflexíveis?), mas o grosso da sociedade só terá benefícios ao ter os botões do raciocínio acionados por boas piadas. Fica, então, meu apelo ao Gregório Duvivier e, nele figurado, a todos os humoristas do Brasil, à direita, à esquerda, acima e abaixo. Não deixem de nos fazer rir. Ajudem-nos a ter alívios momentâneos para nosso sofrimento. E despertem nossa razão. As risadas mostrarão que estão no caminho certo.É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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