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''Rhapsody'', segundo David Greilsammer

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Antes só do que mal acompanhado. O dito popular é super válido para a Rhapsody in Blue, de George Gershwin. A peça que ele compôs para a banda de Paul Whiteman em 1924 em geral costuma ser acompanhada, em concertos ou gravações, do Concerto em Fá, de Um Americano em Paris ou então de uma suíte da ópera Porgy and Bess. Nada contra. São até obras bastante interessantes e que ajudam a entender melhor a cabecinha fantástica do compositor que revolucionou a Broadway nos anos 20 do século passado. Mas, depois de ouvir este CD onde o pianista David Greilsammer faz da Rhapsody a companheira de duas obras praticamente desconhecidas, ao lado da Orquestra Filarmônica da Radio France (selo Naïve), você terá de admitir que dificilmente haverá outro CD com tamanha adequação de repertório em torno da célebre obra-prima gershwiniana. Mesmo que o raciocínio pareça hoje um tanto pré-histórico, já que não existe mais o chamado CD nem nenhum conceito - mas apenas a obra isolada, que pode ser baixada da internet. Aparentemente, David cercou a Rhapsody in Blue de duas primeiras gravações mundiais de obras europeias também compostas paralelamente à de Gershwin: o Concerto no. 2 para piano e orquestra de Alexandre Tansman e a Fantasia para piano e orquestra de Nadia Boulanger. Mas o que aconteceu foi justamente o contrário. Ele mesmo conta, em entrevista, que a Rhapsody foi a última peça a ser pensada para o CD, nascido como concerto gravado ao vivo em novembro de 2009 na Salle Pleyel em Paris. O projeto gravita mesmo em torno do segundo concerto para piano do polonês Alexandre Tansman, que hoje poucos conhecem. Notável pianista e compositor polonês, Tansman nasceu um ano antes de Gershwin, em 1897, só que viveu até 1986. Bem, Tansman mudou-se para Paris em 1919. Lá conheceu e estudou com Nadia Boulanger, a mestra de nove entre dez compositores contemporâneos do século 20. Também papeou, de passagem, com George Gershwin em 1923, quando este visitou Paris: queria estudar com Nadia, que, ao ouvir suas composições populares, disse-lhe que desistisse de ser um compositor erudito de segunda classe e continuasse sendo um Gershwin de primeira. O mesmo conselho, aliás, Nadia deu décadas mais tarde a outro músico talentosíssimo, o argentino Astor Piazzolla. Existe outra versão hilária, mais para piada, do mesmo fato: Gershwin teria pedido para estudar com Maurice Ravel e este, quando soube que o norte-americano ganhava anualmente a fabulosa soma de 1 milhão de dólares, respondeu-lhe: "Eu é que preciso estudar com você!" Tansman era um sujeito ligadíssimo e bastante conhecido nos meios musicais dos anos 20, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Tanto que estreou seu segundo concerto para piano e orquestra em Boston, em 1927, com a sinfônica da cidade regida por Sergei Koussevitzky. Dedicou-o a ninguém menos do que Charlie Chaplin. Seria mais ou menos como hoje dedicar um concerto clássico para piano e orquestra a Eddie Murphy.Apesar da beleza, consistência e swing inegáveis, a obra permaneceu inédita em disco até esta ótima gravação de David Greilsammer. Em seus quatro movimentos, é ao mesmo tempo tributária do universo pianístico de Prokofiev (no Allegro resoluto inicial) e flerta discretamente com Gershwin não só no Allegro citado como também no Scherzo e no finale. O caldeirão de Tansman inclui ainda um tanto de Ravel e pitadas de Stravinsky - tudo regado, claro, a uma incrível dificuldade técnica para o piano. David sai-se bem ao lado da Filarmônica da Radio France. A segunda gravação mundial só poderia ser assinada pelo citado 3º nome deste triângulo, Nadia Boulanger (1887-1979). David faz uma bela leitura de sua fantasia para piano e orquestra. Durante a segunda década do século 20, Nadia tocava a tripla carreira de compositora, pianista e regente. Ela regeu a estreia desta fantasia que não esconde tonalidades franckistas - por franckista entenda-se Cesar Franck, que ela adorava e por isso aqui adota o esquema das variações sinfônicas do grande compositor belga radicado na França. Mas há na obra também a elegância de Fauré, certos wagnerismos e, no Allegro final, semelhanças expostas com a música arisca de seu amigo Igor Stravinsky da fase dos Balés Russos. Pena que esta orquestra, soando tão bem e com um repertório tão inteligente, tenha realizado um programa absolutamente convencional em seus dois concertos na Sala São Paulo semana passada. Afinal, teria sido razoável uma orquestra francesa homenagear uma de suas mais importantes compositoras.

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