Revista "Barroco" discute o Brasil

Nova edição da revista é uma preciosa contribuição ao conhecimento da arte e dos costumes do Brasil colonial, com textos que discutem também o espaço que o barroco tende a ocupar no século 21

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Por Agencia Estado
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Indispensável - é o qualificativo que primeiro ocorre a quem, admirador do barroco, folheia mais esta preciosa contribuição ao conhecimento da arte e dos costumes do Brasil colonial. Com a leitura dos textos, outro adjetivo logo se apresenta: difícil. Não é um livro de leitura fácil. Nem é um livro, a rigor, apesar da edição esmerada, com encadernação em capa dura, papel de primeira e diagramação do melhor nível. Como a própria obra se define, trata-se de um número-simpósio - é a 18.ª edição da revista Barroco, fundada e dirigida por Affonso Ávila e que a arquiteta Selma Melo Miranda, autora de um dos textos, apropriadamente classifica como "raro caso de espaço aberto ao debate da arte, na atualidade". O Território do Barroco no Século 21 , produzido em parceria com o Instituto Cultural Flávio Gutierrez, é um esplêndido conjunto de textos assinados por especialistas brasileiros e de mais sete países, todos eles respeitáveis e importantes conhecedores do barroco em suas diferentes manifestações. De um modo geral, mostram zelo pela terminologia correta, o que reforça a seriedade e a credibilidade, mas quase sempre dificulta o entendimento para os não-iniciados. Aliás, talvez seja mais justo dizer que esse é um livro de leitura difícil para não-iniciados. Mas também para esses (para nós) é um livro indispensável, pois sempre dá para captar o sentido principal dos ensaios e, aqui e ali, encontram-se textos mais fáceis, como Ouro Preto Cidade Histórica - Cidade de Hoje, assinado pelo arquiteto e urbanista Augusto Carlos da Silva Telles, uma síntese bem contada da antiga Vila Rica, da descoberta do ouro à estruturação informal da povoação, resultado da conturbação de sucessivos arraiais mineradores ao longo do Vale do Funil e dos córregos Tripuí, Caquende e Sobreira. Quem já esteve em Ouro Preto entenderá melhor esse maravilhoso fenômeno artístico-social-econômico com as informações de Silva Telles. Menos acessível, mas igualmente primoroso, é o ensaio do filósofo paraense Benedito Nunes, Um Triunfo Barroco na Selva Amazônica, sobre a experiência do célebre padre Antônio Vieira entre os "brutos índios" que os jesuítas catequizavam: maimanás, aruãs, mapuás, paiacás, guajarás, pixispixis, tupinambás. Como cada nação indígena falava o seu idioma específico, a evangelização se arrastava por um tempo sem fim, enredava-se em empecilhos de toda sorte. Nessas circunstâncias - e tal como descreve Vieira -, a conversão dos selvagens é o triunfo barroco em plena selva amazônica. Em ensaio que até parece feito para confirmar a argumentação de Benedito Nunes, a historiadora Adalgisa Arantes Campos cita o apóstolo Tiago, para quem o homem deve ser um executor da palavra de Deus, discorrendo a seguir sobre a idéia cristã da bondade, que tem no sepultamento a sua expressão maior: "o rogar dos vivos a Deus pelos mortos e o conceder funeral e campa ao homem desprotegido". O título deste ensaio, em si, encanta: A Idéia de Barroco e os Desígnios de uma Nova Mentalidade: A Misericórdia Através do Sepultamento pelo Amor de Deus na Paróquia do Pilar de Vila Rica (1712-1750). Entre tantas outras, o livro tem a virtude de ampliar, para além da arquitetura e do urbanismo, a noção do que constitui o barroco. Como bem observa Adalgisa Arantes Campos, "o homem barroco não concebe a mortalidade pura e simples, há a dimensão espiritual". Analisando A Linguagem escrita e Visual Barroca, a historiadora Cristina Ávila lembra que o Concílio de Trento (1545-1563) reafirmou o latim como língua obrigatória do culto da igreja. Criava-se um complicador a mais na relação entre sacerdotes e leigos, pois apenas o sermão era falado na língua vulgar, pronunciado do púlpito. Vem daí o magnífico trabalho que os artistas barrocos executaram na criação dos púlpitos. Cristina Ávila ilustra esse trabalho com fotos dos púlpitos das igrejas mineiras de Mariana e Sabará. Ainda mais ricamente ilustrado com fotografias é o ensaio assinado pelo luso-canadense Luís de Moura Sobral, Ut pictura poesis: José de Anchieta e as Pinturas da Sacristia da Catedral de Salvador. Moura Sobral registra a grande repercussão que teve, na época, o Poema da Bem-Aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus, do padre José de Anchieta. São 5.787 versos em latim, escritos em 1563, quando Anchieta esteve prisioneiro dos tamoios, em Iperoig. O poema só seria traduzido para o português e publicado um século mais tarde, em Lisboa, mas sempre foi muito comentado e inspirou escultores e arquitetos em todo canto por onde pregavam os jesuítas. Moura Sobral procura responder, justamente, se no barroco brasileiro também houve influência da poesia de Anchieta. A comprovação mais exuberante está na Catedral de Salvador, "exemplo da preocupação tipicamente barroca com a conceituação de espaços sacros". Denso e substancioso, o n.º 18 de Barroco atingiu o objetivo de discutir o espaço que o barroco tende a ocupar no século 21. É um livro difícil, com alguns parágrafos herméticos e textos quase sempre feitos de frases longas, que às vezes é preciso ler mais de uma vez. Mas é um livro importante, indispensável. Revista Barroco, N.º 18, diversos autores, edição de Affonso Ávila e Angela Gutierrez. Instituto Cultural Flávio Gutierrez, 500 págs., R$ 50,00.

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