RETRATO DA REALIDADE ROMENA

Em Além das Montanhas, Cristian Mungiu reflete sobre temas como sexo e religião

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Havia gente torcendo por Além das Montanhas no Festival de Cannes do ano passado, incluindo o enviado do Estado para o maior festival de cinema do mundo, e embora o júri presidido por Nanni Moretti tenha preferido premiar Amor, de Michael Haneke - agora coroado de indicações para o Oscar -, o filme de Cristian Mungiu obteve suas recompensas. Um prêmio de roteiro, para o próprio diretor, e a divisão do prêmio de melhor atriz entre as duas protagonistas, Cristina Flutur e Cosmina Statan.O prêmio de roteiro pode parecer surpreendente, mas não porque Além das Montanhas não seja bem escrito, o que é. Mas Mungiu merecia mesmo era o prêmio de direção. Há algum anos, coroando o (re)nascimento do cinema romeno, Mungiu já havia recebido a Palma de Ouro por Quatro Meses, Três Semanas e Dois Dias, sobre garota que ajudava a amiga a fazer aborto no quadro de um país devastado, econômica e moralmente, após a destruição que nele operou a ditadura comunista de Ceausescu. A Romênia continua um inferno em Além das Montanhas, que se passa quase todo num monastério aonde chega uma garota para convencer a amiga a desistir do noviciado e acompanhá-la numa viagem (uma fuga?) para a Alemanha.O monastério tem suas regras rígidas e a presença da 'estranha' desestabiliza a vida do grupo. Sob pressão, ela tem crises de destruição que levam o líder do grupo a operar um exorcismo - ela estaria possuída pelo Demônio. O exorcismo não tem o resultado esperado. O caso todo vira uma tragédia, Mungiu baseou-se num caso ocorrido na Romênia, anos atrás, mas não o seguiu fielmente. Usou-o para tratar de assuntos que o perseguem, como a própria realidade romena. O país parece concentrar uma súmula dos problemas que ditaduras familiares do Leste infringiram a países atrasados - a Romênia, a Albânia."A religião foi sempre importante para os romenos", disse o diretor numa entrevista para o repórter do Estado, em Cannes. "Apesar de todas as tentativas do Estado para impor o ateísmo, o povo foi sempre muito religioso. No pós-comunismo, com o sentimento de exclusão social que atingiu a maioria da população, entregue à própria sorte, a importância da religião cresceu mais ainda. A Romênia tem hoje muitas crenças paralelas à que seria a religião oficial, o catolicismo." Encarar o assunto era, para Mungiu, uma forma de seguir falando sobre as forças políticas que continuam dominando o povo romeno.Só que Cannes teria feito muito melhor premiando a mise-em-scène elaborada de Além das Montanhas. "O roteiro foi escrito prevendo a filmagem em planos-sequências", explicou o autor. Tudo foi feito em função da câmera. Aquele monastério não existe. Foi construído pela direção de arte, prevendo os deslocamentos dos atores e da câmera. Tudo era muito cronometrado - para atravessar de um lado a outro, o prédio com o refeitório e os leitos até a igreja, precisava de um controle rigoroso, porque senão o timing do filme seria comprometido."As próprias atrizes, premiadas em Cannes, não tinham experiência com a câmera. "Cristian foi muito paciente conosco", explica Cristina. "Ao mesmo tempo que tinha de se ocupar dos problemas técnicos, que eram numerosos, ele sempre teve muito claro, e nos dizia, que o filme dependia de Cosmina e de mim para funcionar." Há uma sugestão de que algo houve entre essas duas mulheres no passado. Talvez tenham sido amantes. Seja como for, Alina, a personagem de Cristina Flutur, tem fixação em Voichita (Cosmina). A adequação da outra à vida na ordem religiosa a deixa como louca, e o espectador fica mesmo em dúvida sobre se ela não sofre de um distúrbio mental."Cristian é muito sucinto nas informações e, ao mesmo tempo, ele quer que tudo seja muito realista. Tivemos todo tipo de acompanhamento para garantir que tanto a parte religiosa quanto a psicológica das personagens fossem verdadeiras", explica Cosmina. "Mas, no limite, o que importava éramos nós, nossas reações diante da câmera. Foi difícil, foi desgastante, mas conversando agora com vocês, jornalistas de todo o mundo, colhemos os frutos. O filme toca pessoas das mais diferentes culturas e origens. E estamos todos muito felizes por isso, mesmo que a história de Além das Montanhas seja um testemunho terrível sobre a fragilidade humana, num mundo em crise", conclui Cristina.

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