Retrato amargo da fama

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Por Redação
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UBIRATAN BRASILAbusca pela fama tornou-se corriqueira no momento em que proliferam revistas focadas em celebridades e programas de televisão que prometem tirar pessoas comuns do anonimato. Tal desejo, embora poderoso nos dias atuais, não é recente: começou a ganhar fôlego há 30 anos, quando ideologias que pregavam a força da união perdiam terreno para o culto do individualismo. "Foi nessa época que começou a tal histeria pelo sucesso", comenta, em conversa com o Estado, a escritora portuguesa Lídia Jorge, autora de A Noite das Mulheres Cantoras, romance ambientado no mundo da música pop dos anos 1980, quando a força da idolatria e a construção do êxito ganhavam contornos mais definidos."Foi uma época em que as pessoas aparentavam ter uma vida dupla, ou seja, além da cotidiana, criavam um fantasma do próprio ser que apresentavam como exemplo de sucesso", diz a escritora, cujo romance mostra a trajetória de uma banda de seis mulheres, criada no final do século passado. Uma delas, Solange de Matos, assume o papel de narradora e, como vive no tempo atual, conta as histórias a partir da memória que guardou de seus 19 anos, quando fundou o grupo musical com as amigas.Solange personifica diversos tipos de mulheres portuguesas, o que a torna fascinante como personagem. Afinal, ela tanto narra a infância passada na África, quando o império português já caducava, como relembra o dramático retorno a seu país de origem, o que torna A Noite das Mulheres Cantoras um dos mais psicológicos romances de Lídia Jorge, autora de 23 obras em 30 anos de carreira. E, como sempre acontece em sua escrita, a questão social é relevante, pois a aniquilação do indivíduo diante da sociedade é o que acaba acontecendo, apesar de todo esforço contrário dos personagens."Para mim, Solange representa a consciência da desilusão, pois ela via o mundo com encantamento até ter um contato com a perversidade da vida e perceber que, nas relações, a traição é um elemento fundamental", afirma Lídia, que conversou com o Sabático por telefone, de Portugal. "Ela acompanhou os momentos finais do que se passou na África portuguesa, especialmente em uma cena impactante do romance." Lídia se refere ao trecho em que o pai, na época em que a família ainda vivia em território africano, é avisado por um "aluno dileto" do iminente ataque contra os portugueses. Para surpresa geral, o pai se recusa em lhe dar guarida.Entre 1970 e 74, Lídia viveu em Angola e Moçambique, experiência que considerou brutal. Ela se recorda do que eram os derradeiros anos do império português e também da dificuldade em viver esse momento da história, que representava o capítulo final da dominação europeia sobre a África.O detalhe não escapou na nova obra - o contraste de um novo Portugal também ganha espaço na escrita de Lídia Jorge, que tanto aborda o destino social dos "retornados" - sobreviventes do naufrágio do Império - como o surgimento de um novo estrato populacional, representado por João Lucena, homem que marcou a vida de Solange e que, ao regressar, revela sua simpatia pelo otimismo americano dos amigos.A narrativa de Solange permite ainda que o leitor conheça Gisela, a líder do grupo musical, justamente a que melhor personifica o desejo inquebrantável pela fama - segundo seus mandamentos, os fins justificam os meios, não importando que o caminho seja marcado por vítimas. Disciplinada e ousada, ela submete tudo à ambição maior do grupo: alcançar o sucesso. "A certa altura disse-nos mesmo que entre nós não haveria mais amores, nem pancadarias, nem acasalamentos, nem sonhos. Sublinhou. Nem sonhos. Disse que todos os nossos sonhos teriam de estar colocados nas pautas que estavam pousadas sobre a tampa do piano", conta Solange."Gisela é uma mulher convicta de que a emoção tem de ser dominada", explica Lídia. "Ela é pragmática, apesar de ter sentimentos muito fortes: Gisela é capaz de vender a alma ao Diabo para realizar seus desejos."Lídia observa que tal ferocidade ainda não era comum naqueles já remotos anos 1980, mas que é um indício das transformações sociais sofridas pelas mulheres. "Se nos anos 1960 e 70 buscava-se o ícone da beleza, na década seguinte descobriu-se que era preciso um salto em busca do poder e, para isso, era preciso utilizar as mesmas armas dos homens", conta. "E isso foi mais visível na música, arte na qual a extravagância conferia essa sensação de liberdade."Tal excentricidade serve também para Lídia descrever o despertar da libertinagem pequeno-burguesa, quando descreve a quebra de tabus na cena em que os personagens nadam nus na piscina. "O slip do José Alexandre era escuro, mas o do Lucena era claro, e quando saltava e se movia era como se estivesse nu", conta a narradora, evidenciando uma moral hedonista, própria daquela década.O tom é de descoberta, mas isento de moralismo - Lídia Jorge reconstrói, por meio da ficção, o poderoso retrato de uma sociedade em transição, que começa a levantar os alicerces da competitividade hoje dominante. Assunto na pauta de sua vinda a São Paulo: na quarta-feira, ela faz palestra e lança A Noite das Mulheres Cantoras no auditório da Faculdade de Filosofia da USP, na Cidade Universitária, a partir das 18 horas."No primeiro dia de março, a garagem encheu-se de gente. Gisela Batista avisou-nos que eram pessoas que traziam consigo saquinhos de ácido no lugar do coração. Mas ela sentia-se calma, tinha confiança absoluta nas suas peças de arte. Iríamos iniciar as nossas proezas diante deles, serenadas e calmas. Maria Luísa já havia retirado o suporte que lhe protegia o braço..."

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