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Retórica ofusca ficção em "O Psicanalista"

Livro de Leslie Kaplan conta as angústias existencias do psicanalista Simon e seus pacientes. Lançado há dois anos, chega ao Brasil em edição da Cia. das Letras

Por Agencia Estado
Atualização:

Seja no clássico mais remoto ou na mais arisca literatura de vanguarda, todo bom autor ao narrar sua história também problematiza o modo de contá-la. Mas sempre há quem lute contra a lei da gravidade e fique a meio caminho entre a quebra de expectativas dos leitores -modelos -, os entediados com os cânones narrativos, e a mais deslavada inconsistência. Norte-americana radicada na França, Leslie Kaplan confia no taco das 502 páginas de seu O Psicanalista. É uma confiança e tanto. Lançado em Paris há dois anos, o romance chegou ao Brasil em edição da Companhia das Letras. O livro é permeado pelas agruras existenciais de Simon, o personagem-título, o drama de seus pacientes e as sinas de seus coadjuvantes. Kaplan abre o livro com uma palestra de Simon - uma leitura extensa e monocórdia sobre lições essenciais em Kafka -, que é rispidamente interrompida por Eva e sua namorada Josée. Eva é uma garçonete autodestrutiva, que por puro sem-sentido mata um homem logo no início da trama. Seu crime, no entanto, não pesará no desenvolvimento do enredo. Afinal, não há propriamente uma ação dramática em O Psicanalista. Seu enredo é pleno esboço: o episódio na palestra desperta um despropositado interesse por Eva da parte de Simon e sua namorada documentarista. Entre um capítulo e outro, a procura do protagonista por Eva dá lugar às consultas de Simon e seus pacientes, que vomitam associações de idéias. Os eventos do livro são em princípio introspectivos, mas não internos, e os tipos de Kaplan parecem sempre prestes a explodir. Os personagens se desinteressam uns pelos outros e se desinteressam pelo mundo. Sentem-se asfixiados ou ocos. Vivem cotidianos desumanizados, inerciais - estão prontos para um divã. Como a literatura de Leslie Kaplan. Até Hollywood já se familiarizou à idéia de que a mente tende à dispersão, a ser vestígio, a afundar-se em camadas até o inconsciente. O texto de Kaplan flagra isso, simula isso. Acompanha o fluxo contínuo das mentes, à base de frases sem fôlego em capítulos curtíssimos. Mas os personagens não interagem. São de todo monólogos, não diálogos. Como na palestra de abertura, predomina sempre a voz de uma só pessoa. É assim nas terapias comandadas por Simon, nas conversas entre Eva e Josée, nos capítulos (únicos narrados em primeira pessoa) protagonizados pela namorada documentarista, escritos como se fossem um diário. O livro é introspecção em voz alta. Não há personagens se construindo aos olhos do leitor, mas um só - a autora, brincando de ser. De ser Simon. Há mais vida na descrição de casos do protagonista (como prontuários de pacientes, quem sabe tirados de arquivo), do que na relação entre personagens. Todos são descritos com distanciamento famélico. Simon está farto de seus pacientes, é anódino e, no mais, destituído de interesse. Passa suas sessões divagando, num monólogo interior recorrente. Nada diz, ou diz pouco, e quando fala algo a mais, é com histeria. Seus pacientes agregam rótulos: o obsessivo Edouard desconhece a existência de outros, como Marc, cuja monomania é lavar as mãos após transar, ou Marie, que chora o tempo todo, sem saber o motivo. Toda a tensão de Josée se resume à agonia diante dos ônibus que passam e a professora de teatro Lousie (cujo flerte com Eva encerra o livro) é puro tédio, vazio, acídia. Os movimentos de tais figuras dariam bons contos, não passassem de retratos em 3 x 4, com lampejos de inegável interesse. Jogados num romance, viraram pretexto para a exibição intelecutal da própria Leslie Kaplan. Cerebral, Kaplan deixa a retórica tomar o lugar da ficção. A autora tem opinião formada sobre tudo. Sobre a obra de Kafka, as quimeras da psicologia, os filmes de Chaplin, a urbanização parisiense, a falta de sentido da vida e do ato de narrar. Criticar é pôr uma obra no divã, parece dizer. O raciocínio - que seja - é bom. A história, não. Ela simplesmente não anda. Só analisa. Gira em semicírculos. Talvez seja esse o intuito da autora. Mimetizar, imitar com estilo, o estilo de um analista. O psicanalista do título. Simon. Os personagens sonham, e como sonham os personagens de Kaplan, e tudo se encaminha como se a comprovar a tese de que "as palavras, os gestos não significam mais nada", como conclui a autora à certa altura. Ela parece ter idealizado o romance com a ambição de mostrar os personagens "por todos os lados ao mesmo tempo", como diz Lousie, cujas palavras sobre como atuar no palco parecem soar como carta de intenções de Kaplan. "Todas as dimensões do que lhe dissemos, você tenta compreendê-las e fazê-las compreender", escreve. "Que vejam e entendam tudo o que é possível a cada vez." Ao tentar tais caminhos, Leslie Kaplan entra em terreno delicado. Um território em que a experimentação pode confundir-se com o descartável e o estilo talvez esconda preguiça narrativa ou incapacidade criadora. Quando não arrogância. Sua prosa parece de algum modo tributária do nouveau roman, dos anos 50 e 60, obviamente só no abolir da intriga, não no da psicologia dos personagens. O tanto que o novo romance de Alain Robbe-Grillet ou Michel Butor se interessava pela descrição formal dos objetos, esvaziados de sua representação, Kaplan o faz com os sintomas interiores de seus personagens. Sintomas que se deslocam, como diz Simon. Leslie Kaplan tende a filiar-se a um time literário que partilha a consciência de que a narrativa tradicional morreu, perdeu funcionalidade e compactua com o status quo. É um drama muito europeu, que despreza toda a vitalidade de outras literaturas, como a latino-americana e asiática. Há uma frase de Umberto Eco vital sobre isso: narrar é encontrar uma forma no tumulto da existência humana. Um autor pode ser indigesto, ter impulsos de vanguarda ou querer apenas enfeitar. Sempre terá na mira um tipo de leitor, o seu, aquele leitor-modelo para quem um certo gênero de texto funciona mais que outro. Mas jamais, sob qualquer circunstância, pode desprezar a saborosa idéia de que a forma é, na prática, o sentido. O Psicanalista. Livro de Leslie Kaplan. Companhia das Letras, 502 páginas, R$ 39.

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