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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Restos imortais

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Atualização:

Serão mesmo de Miguel de Cervantes alguns daqueles ossos achados no convento das trinitárias, em Madri? Se reprovados no teste de DNA, quantos anos mais serão investidos na mórbida caça aos restos mortais do autor de Don Quixote? Qual a relevância dessa pesquisa? Se ainda suspeitassem que ele foi assassinado e buscassem uma confirmação, vá lá. Ao ruminar essas dúvidas, claro que de pronto me veio à cabeça a figura de Pierre Ménard. Não foi a única, diga-se; mas a primeira, sem dúvida, foi. Culpa (ou mérito) de Jorge Luís Borges, que a inventou num conto escrito para a revista Sur no início da Segunda Guerra e pouco depois enfeixado em Ficções, com o título de Pierre Ménard, Autor de Quixote. Imaginário escritor francês do século passado, Ménard teria recriado Dom Quixote linha por linha, valendo-se dos conhecimentos do seu tempo, vantagem considerável, segundo Borges, cuja fantasia ensaístico-biográfica alimentou um sem-número de discussões sobre os conceitos de autoria, releitura, plágio e apropriação criativa nas quais até Jacques Derrida jogou suas luzes. Os restos mortais de Ménard, por motivos óbvios, jamais foram nem serão procurados - apesar das controvérsias a respeito de sua tumba. Até depois de morto, Ménard foi fiel a Cervantes. Ou assim nos fez crer outro francês, Michel Lafon, que se aventurou a produzir um romance borgesiano (vale dizer, "en abîme") sobre a vida do escritor, cautelosamente intitulado Une Vie de Pierre Ménard (Gallimard, 2008, 183 págs.). "Nascido" em Montpellier (ou teria sido Nîmes?), em 18 de março de 1862, o reescritor de Don Quixote conviveu com intelectuais de primeira grandeza (Gide, Valéry, Unamuno) e "morreu" em agosto de 1937. Acreditava-se que tivesse sido enterrado em Lyon, mas Lafon "localizou" seu túmulo no cemitério de Saint-Lazare, na entrada de Montpellier. Se em certo sentido Ménard, como acreditava Borges, foi além de Cervantes, Lafon foi, no mesmo sentido, além de Borges. A segunda figura que me veio à mente ao ler sobre a escavação no convento madrilenho foi o poeta Federico García Lorca, cujos restos mortais nunca foram encontrados. Estes, a meu ver, fazem mais falta que os de Cervantes. Primeiro porque seu paradeiro permanece desconhecido; segundo porque talvez contenham alguma informação enriquecedora sobre a repressão franquista, no início da Guerra Civil espanhola; terceiro porque Lorca não morreu de morte morrida: foi arrancado de casa e fuzilado por milicianos fascistas, na calada da noite, em agosto de 1936, por suas inclinações políticas e sexuais. Ele era de esquerda, homossexual e simpático aos republicanos. Tinha 38 anos e uma poderosa obra poética e teatral. Três outros antifascistas - um professor perneta (Dióscoro Galindo) e dois modestos toureiros (Francisco Galadí e Joaquín Arcollas) - foram executados junto com ele e também enterrados às pressas em covas não identificadas, na extremidade de um campo de oliveiras e ciprestes, nas cercanias de Granada. Estima-se que cerca de 120.000 pessoas tenham sido assassinadas em condições semelhantes pelas brigadas franquistas, durante os três anos da Guerra Civil. Se só depois da morte do ditador Francisco Franco (em 1975) é que os espanhóis começaram a falar sem medo em localizar, desencovar e dar enterro digno às vítimas do ódio fascista, só em 2007, com a Lei da Memória Histórica, assinada pelo presidente José Luís Zapatero, o Pacto del Olvido (a Anistia espanhola) pôde ser rompido e o processo de busca e exumação iniciado oficialmente. Em dois anos, 200 covas contendo 5.500 cadáveres foram reabertas, para horror das forças políticas de direita, enriquecidas durante a ditadura franquista e interessadas em manter o passado, sem trocadilho, debaixo da terra. Em nenhuma delas deram com os ossos do bardo gitano. Ian Gibson, biógrafo irlandês de Lorca, entrevistou o suposto coveiro do poeta, Manuel Castilla, que lhe mostrou o lugar da desova, mas a primeira equipe de buscas, pressionada pela família de Galadí, o toureiro anarquista fuzilado no mesmo assalto, mas prejudicada pela irmã do poeta, Isabel García Lorca, relutante quanto à exumação, nada descobriu. Além da crescente escassez de testemunhas e das alterações impostas ao entorno da estrada que une Víznar e Alfacar, onde já montaram um circuito de motocross e quase ergueram um estádio de futebol em 1998, suspeita-se que o próprio generalíssimo Franco, assustado com a repercussão internacional do assassinato, tenha ordenado o traslado dos ossos do poeta para outra vala anônima, pouco distante dali. Isabel já se resignara com as escavações quando o investigador Eduardo Molina Fajardo publicou Los Últimos Dias de Federico García Lorca, resultado de 10 anos de pesquisas junto a pessoas que participaram da execução e do sumiço do corpo do poeta. Apesar de falangista, Fajardo assegura: Lorca foi barbaramente assassinado e enterrado num terreno conhecido como Peñon Colorado, a mais ou menos 1km de distância de onde sempre procuraram o que dele sobrou. Nos últimos meses do ano passado, uma nova equipe de arqueólogos iniciou a busca no perímetro suspeito, interrompida pela chegada do inverno e da neve. Que a primavera lhe traga a sorte que às anteriores fez falta. E o poeta possa ter seu funeral com as honras que a Espanha lhe deve há 79 anos.

Opinião por Sérgio Augusto
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