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Ressaca cívica

Há quem tenha recebido goela abaixo, horas atrás, beberagem eleitoral da pior safra

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Pode parecer coisa de maluco, e com certeza é, coisa de quem vive desde sempre emaranhado nas palavras. O fato é que outra vez meus dedos, no teclado, se detêm, dubitativos, ao pé de uma questão que para muitos denunciaria QI inferior a zero, quando não necessidade de ser levado para a terapia de ambulância e com a sirene ligada: o que expressa mais tempo transcorrido, meio século ou 50 anos?

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Pausa para você se refazer do despautério supra. Provavelmente não conseguirei convencer ninguém de que há casos em que uma tonelada pesa mais do que mil quilos. Sutileza demais da parte de um escriba sem mais o que fazer? Então imagine que você pesa 60 quilos, conquistados com tanta dieta e malhação, e venha um espírito de porco converter a marca em 4 arrobas, com toda a conotação suíno-pecuária que há nesta palavra. Ou que, tendo você completado 50 anos de vida, venha alguém cumprimentar pelo meio século de existência. Meio século! Aconteceu comigo, e me senti péssimo, como se muito mais tempo se houvesse acumulado sobre os ombros.

Faz um tempão. São outros os 50 anos – ou o meio século? – completados nesta manhã de segunda-feira, manhã de aguda ressaca cívica de quem recebeu goela abaixo, horas atrás, beberagem eleitoral da pior safra. Não é por acaso que a memória regurgita a lembrança de outro 3 de outubro, do ano de 1966, em que, tendo acordado no bem-bom da casa de meus pais, fui dormir na cela 3 do Dops de Belo Horizonte, dispondo, como travesseiro, de nada mais que uma Nota de Culpa recém-assinada na qualidade de infrator da Lei de Segurança Nacional.

Longe de mim, sossegue, a pretensão de produzir aqui memórias do cárcere, até por não haver nas minhas o menor rasgo de heroísmo. A bem da verdade, houve mais ingenuidade que heroísmo na facilidade com que me deixei deter, numa esquina do Centro de Belo Horizonte, por dois guardas-civis, quando participava de uma passeata, naquela tarde em que um Congresso Nacional subserviente elegia em Brasília o general Costa e Silva para a Presidência da República.

Já contei como isso me aconteceu, e até falei da foto estampada em O Diário (“o maior jornal católico da América Latina”, há muito extinto) dois dias depois, na qual estou de perfil, sustido pela gola por um dos meganhas, enquanto aguardo o outro enfiar no camburão meu amigo Carlos Roberto Pellegrino.

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Em tempos ainda de “barra leve”, se comparada ao que viria com o AI-5, fiz parte da primeira turma de estudantes que, tendo sido presos, não foram liberados horas mais tarde. No que pretendeu ser medida exemplar, fui, como 12 outros companheiros de gaiola, acusado de haver cometido uma fartura de crimes, entre eles os de promover depredação, saque, incêndio e, pasme, devastação. Uma versão humana da barragem da Samarco em Mariana. Nunca mais tive meus feitos assim superestimados. Areia demais para o meu caminhãozinho, para o tanquinho de guerra do jovem revolucionário.

Passei 17 dias (registrados um a um a lápis na parede, à maneira de presidiário de filme) naquela cela 3, cujo vizinho de frente era um jovem sociólogo bolivariano, ou melhor, de nome Bolivar (hoje Bolívar) Lamounier, que na manhã deste meu particular cinquentenário há de estar, nesta mesma cidade de São Paulo, jubiloso com a esmigalhadora vitória eleitoral, horas atrás, de alguém cujo receituário ideológico à época talvez lhe parecesse algo a combater renhidamente.

Quanto a mim, se nessas cinco décadas não me provi de longo bico, agora mais que nunca em moda, por outro lado já não me arrepio todo ao recitar o flamejante verso com que o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, na juventude, propôs para o Brasil nada menos que o similar de uma revolução soviética: “Outubro ou nada!”.

Como tantos da minha geração, passei nas ruas boa parte do ano de 1968, certo de que a gente ia virar o jogo. Pena que, engalfinhados com nossos generais, tenhamos dado tão pouca atenção a revoluções mais consequentes que pipocavam pelo mundo, nas artes, no comportamento, na política e na própria maneira de fazer política, e que de modo algum excluiriam a nossa.

Engessado numa empertigada sisudez de militante revolucionário, para mim teria sido saudável o provocativo bom humor do chileno Nicanor Parra, que só mais tarde vim a conhecer e admirar: “¡La izquierda y la derecha, unidas, jamás seran vencidas!”, concitava o poeta, disposto, salomonicamente, a incomodar um lado e outro. Como não é para levar ao pé da letra, dispenso a destra, mas não a irreverência do grande Nicanor, antídoto infalível, entre outros benefícios, em caso de ressaca cívica.

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