Relançamentos de Arthur Russell retratam sua influência e sua visão

'Zummo with an X', disco de 1985, retrata uma das parcerias mais constantes do artista

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Por ROBERTO NASCIMENTO - O Estado de S.Paulo
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Desde que a obra do compositor, cantor e instrumentista norte-americano Arthur Russell (1951-1992) passou a receber sua devida atenção, em 2004, sua influência tornou-se praxe no panorama pop independente. Caribou, Yeasayer, Hot Chip e Matthew Dear são apenas alguns dos talentos atuais que transitam pela área indefinida entre rock, pop e eletrônica, como fazia Russell, e ecoam os cacoetes melódicos e a liberdade timbral do músico em suas produções. O efeito de compilações, de uma biografia, de um documentário e de relançamentos - entre eles sua parceria com o trombonista e compositor Peter Zummo, Zummo With an X, que voltou ao mercado em vinil nesta semana, e pode ser comprado via iTunes - trata-se de uma redescoberta lógica. Russell foi pouco conhecido fora do underground nova-iorquino durante os anos 70 e 80, época em que esteve ativo. Mas seu brilhante universo sonoro, em que folk, erudito, disco, dub e experimental coexistem, antecipou a era da produção lo-fi, feita em casa, com um laptop (em seu caso, o gravadorzinho multicanais que usava para registrar as fitas demos e os esboços que compõem seu catálogo). O relançamento de Zummo with an X, disco de 1985, retrata uma das parcerias mais constantes de Russell, que chagava a passar dias a sós, em seu apartamento, gravando música. É de Zummo o trombone de sua clássica faixa de pista Go Bang#5, uma das diversas explorações instrumentais de Russell pelo universo da disco music. O trombonista também participa de outras colaborações que retratam o experimentalismo de Russell ao violoncelo, acompanhado de seus pistões. Essas viagens improvisadas constam como a parte mais vibrante do disco (a maioria das faixas são composições minimalistas de Zummo que exploram a repetição de intervalos musicais). O ponto alto é a faixa de abertura de 20 minutos, Song IV, um improviso etéreo de trombone, violoncelo e tabla. Russell usa seu arco para recriar uma constância semelhante ao zumbido de uma tamboura; Zummo funde seu trombone a este som para criar algo que remete à constância meditativa de uma raga: experimentalismo sublime, um dos grandes momentos da polivalente musicalidade de Arthur Russell. No entanto, ao mesmo tempo em que habitava as linhas de frente do vanguardismo, Russell era um exímio cancionista. Cenas do excelente documentário de Matt Wolf, Wild Combination, sobre a vida de Russell, retratam seu desejo de ser uma estrela pop, embora cicatrizes deixadas por espinhas durante sua adolescência eram tidas pelo próprio como uma limitação. Abobrinhas de Arthur Russell, pois a primeira audição de uma faixa como a apaixonante Love is Overtaking Me, ou The Letter - ambas lançadas apenas em 2008 - seria suficiente para apagar qualquer defeito físico na imagem do músico. Mesclam folk com dance de forma orgânica, amparada pela sinceridade e economia poética das letras do músico. A multifacetada carreira de Arthur Russell espelha sua biografia. Cresceu entre os milharais de Iowa, onde a influência da música country se instalou em seu inconsciente. Mudou-se para San Francisco no início dos anos 70, onde morou e estudou em uma escola criada pelo mestre de música indiana Ali Akbar Khan. Foi nessa época em que conheceu o poeta Alan Ginsberg, quem namorou brevemente. Russell acompanhava suas leituras poéticas ao violoncelo, o que foi o início de uma relação de aprendiz e com Ginsberg. Em meados dos anos 70, mudou-se para Nova York, onde fez parte do Flying Hearts, grupo de rock formado com David Byrne, dos Talking Heads, Rhys Chatham, o compositor, e Peter Gordon. Em 1979, produziu Kiss Me Again, o primeiro single de disco music para a gravadora Sire Records, e teve o respaldo da comunidade de clubs nova-iorquinos. Parte do que faz de seus discos objetos de desejo cult é a forma crua com que suas produções foram feitas. O grosso das mais de 1,000 fitas que Russell deixou traz canções e explorações inacabadas (40 dessas fitas contêm arranjos diferentes de apenas uma música). A sonoridade caseira de Another Thought, de 1994, ou Love is Overtaking Me, de 2008, lançadas por seu companheiro depois de sua morte, de AIDS, nos anos 90, seria inaceitável no mercado da época em que foram feitas. Hoje, são meta estética comum entre artistas contemporâneos. Seu único disco propriamente lançado foi World of Echo, de 1986, que obteve uma resposta positiva da crítica britânica. Mesmo assim, Russell criou na obscuridade durante sua carreira. Seu processo de canonização começou em 1994, com o lançamento de Another Thought, embora tenha ganho força apenas dez anos depois. Trata-se de um disco-síntese de seus talentos. Ao mesmo tempo em que traz faixas instrumentais, conta com canções como a sublime This is How We Walk on the Moon, faixa meditativa e preciosa que reflete a o mundo etéreo que Russell habitou próximo à morte.

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