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Regina Silveira radicaliza na arte de grandes formatos

A artista abre hoje exposição individual em que usa sólidos geométricos gigantescos para projetar sua ironia sobre o lugar da arte no mundo

Por Agencia Estado
Atualização:

Há mais de três décadas, Regina Silveira plantou, com solidez, seu nome no elenco dos artistas brasileiros fundamentais à contemporaneidade. Naquele elenco que brilha tanto no circuito nacional quanto em grandes mostras internacionais. Os motivos dessa qualidade podem ser novamente avaliados, a partir de hoje, na individual que ela abre na Galeria Brito Cimino. Também estão evidentes, desde sábado, na instalação em realidade virtual que a artista fez para a mostra coletiva Emoção Art.ficial, no Itaú Cultural. Ou, mesmo, no enorme painel cerâmico inaugurado na quinta-feira, na fachada lateral do Instituto de Matemática da USP, em São Carlos. É uma trajetória em acelerado movimento ascendente, cada vez mais denso de resultados. Boa parte desse exercício expressivo se fez na superfície plana. Foi assim nos começos como pintora, que mereceram o apoio entusiasmado de seu professor, Iberê Camargo. Foi assim no largo espaço de tempo desde então, em que vem investigando diversos suportes e meios para realizar um pensamento marcadamente gráfico, originado no pleno domínio técnico da gravura. Disciplina, aliás, que lecionou na universidade, sempre tomando cuidado de apresentá-la aos alunos como porta de entrada para expansões multimeios. Pois agora, no exato instante em que Regina Silveira poderia desfrutar comodamente do desdobramento mais ou menos previsível de um repertório já dominado, ela radicaliza e se impõe novos desafios. Sai da superfície plana. Abdica da ilusão do volume virtual que caracteriza uma importante fatia de sua produção. Ousa mais. Ousa trabalhar com formas tridimensionais gigantescas, escultóricas, levadas às últimas conseqüências. Ou penúltimas, se atentarmos bem para a enorme fertilidade criativa da artista, sempre capaz de nos surpreender com outros ângulos de seu tema constante: os códigos de representação da imagem. Regina é artista que entende em profundidade as questões de escala, de tamanho, na obra de arte. Entende como poucos de seus colegas, de todas as latitudes. Não por acaso, sua instalação-site specific A Lição ocupa com grandiloqüência operística todo o espaço expositivo da Galeria Brito Cimino. Ao mesmo tempo, no entanto, essa obra pode ser vista em pequena maquete, colocada no mezanino. E nada perde de sua contundência visual. Ou, reproduzida na foto desta página, atrai o olhar do leitor como um ímã. Quase não há diferença entre o real e o representado. O que é isto? Mágica? Também. Rigor matemático? Evidente. Arte? Sim, em sua natureza mais essencial e, paradoxalmente, impalpável. Há quem circunscreva e reduza a leitura da obra de Regina Silveira a uma mera projeção de sombras. Confundem o instrumento com o conteúdo, uma ferramenta com a fina arquitetura aérea que dela resulta. A Lição, a grosso modo, pode ser vista como projeção de sombras, claro. Assim como uma tela pode ser vista como acúmulo de tintas. Mas é muito mais do que isso. O conjunto de sólidos geométricos é habitado por uma ironia metalingüística, que incide tanto sobre os códigos tradicionais de representação do volume no espaço quanto sobre a própria natureza simbólica do lugar onde está colocado: a galeria de arte. E, claro, sobre a anatomia e o caráter do fazer artístico. "Esses quatro sólidos geométricos - a esfera, o cone, o cilindro e o cubo - são utilizados no modelo tradicional de ensino da arte", comenta a artista. "São colocados diante do aluno para que ele veja a escala, o volume, o claro e o escuro, aprendendo a desenhá-los." Ou seja, é um modelo mental, um constructo, um artifício criado para transpor o real para o virtual. Apropriado por Regina, esse modelo mostra seu avesso, ironizando a solenidade e o anacronismo das prescrições tradicionais. Ainda conforme a artista, esse trabalho "é uma espécie de hipérbole visual". Modelo agigantado até a escala de uma instalação, propõe ao visitante um embate físico. Convida-o a penetrar no espaço entre os sólidos, medir-se e confundir-se com aquelas formas, vê-las de diversos ângulos e distâncias e chegar a percebê-las totalmente brancas ou totalmente pretas. A Lição remete, também, a dimensões metafísicas, suspensas no tempo, grávidas de ausência e silêncio, imortalizadas nas telas de pintores como o italiano Giorgio De Chirico. Foi em registro metafísico que Regina Silveira criou, em 1998, Todas las Noches, que está na origem de A Lição. A convite do Museu de Arte Contemporânea de Monterrey (México), desenvolveu um projeto especial para aqueles espaços: Todas las Noches, sombras imensas que dramatizam os espaços vazios do museu. Como se o edifício tivesse seu teto removido para deixar entrar o luar. Presente em maquete na exposição da Brito Cimino, Todas las Noches incorpora uma enorme esfera existente na arquitetura original do museu de Monterrey. Começava a se insinuar, por meio desse sólido geométrico, uma dimensão escultórica até então inédita na obra da artista. Com esse novo terreno à sua frente, Regina tratou de ancorá-lo a seu imaginário ligado aos universo doméstico. Articulou dois planos e criou a série de objetos Dobras. Objetos como cadeiras e outros que são, assim, simultaneamente, percebidos como representação plana e volumétrica. Dia e noite - A esfera voltaria, gigantesca, na instalação Equinócio, mostrada em 2000 no Parque Lage (Rio) e depois, em versão ainda mais sutil e poética, na mostra Estratégias para Deslumbrar, coletiva promovida, no início de 2002, pelo Museu de Arte Contemporânea da USP, no edifício da Fiesp, na Avenida Paulista. Conforme situa Regina, "no Rio, o Equinócio se montava na relação da esfera com o vazio da rosácea (janela em formato de óculo), no alto da sala". A luz que deveria penetrar pela janela é transformada em seu oposto, o cone de sombra, gerando o que a astronomia denomina de equinócio, ou seja, a divisão do globo terrestre (a esfera) em duas fatias iguais: dia e noite. Na versão exibida em São Paulo, Equinócio instalou uma ilusão de ótica: Regina projetou na parede uma imagem de esfera, tão perfeita em suas zonas de luz e sombra que parecia real ao ser contraposta a outra esfera, esta de existência e volume presente no espaço, pousada no chão, como seu duplo encarnado na materialidade. Uma sombra equinocial confrontando outra. Em A Lição, finalmente, a esfera é reunida aos outros sólidos para reverberar novas relações espaciais e metafóricas. A poesia deu lugar à acidez. Relações metafóricas também não faltam à obra que Regina exibe no Itaú Cultural, denominada Descendo a Escada (em flagrante referência à pintura-ícone de Marcel Duchamp, Nu Descendo a Escada). O visitante é jogado em um espaço vertiginoso, em uma escada virtual que ganha movimento e o leva para baixo, para um abismo negro. Não será mera coincidência se, durante essa experiência, nos vier à mente associações de idéias com o momento atualmente vivido por nós, temerosos habitantes da pátria verde-amarela debruçada no abismo das cotações da moeda. Descendo a Escada é uma versão em realidade virtual da obra Escada Inexplicável, realizada especialmente para a mostra coletiva Por que Duchamp?, no Paço das Artes, em 1999, sob curadoria-geral de Ricardo Ribenboim. Tanto nesse trabalho como em sua versão atual, a artista realiza distorções projetivas, isto é, subverte os códigos tradicionais de perspectiva. Uma operação que, seja por meio da linha, seja por meio da sombra, confere estranhamento ao cotidiano. Foi também utilizando distorções projetivas que a artista criou o painel cerâmico Teorema da Gaveta para o Instituto de Matemática e Computação da USP (câmpus de São Carlos). Nesse trabalho, a imagem descarnada em traço articula dois planos e "levanta-se" da planaridade conforme o visitante se desloca em sua frente. Uma homenagem da artista aos matemáticos e técnicos em computação que, seja no passado, seja na atualidade, inventaram e operam alguns dos instrumentos que ela emprega para fazer arte com a ciência. Ou uma ciência do olhar artístico. Regina Silveira. De terça a sábado, das 11 às 19 horas. Galeria Brito Cimino. Rua Gomes de Carvalho, 842, tel. 3842-0634. Até 28/9. Abertura hoje às 20 horas, para convidados.

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