REFLEXÃO

Primeiro disco de Fábio Martino revela não só toque diferenciado, mas articulada compreensão das obras

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Por JOÃO MARCOS COELHO
Atualização:

FÁBIO MARTINO

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Para construir uma carreira sólida, o pianista precisa injetar uma rara intensidade na dedicação à música, quase impossível de se manter por longos períodos. Quem consegue a façanha de manter a adrenalina e a disciplina diária percorre metade do caminho, talvez uns 60%. Os demais 40% são quase sempre negligenciados pelos músicos: informar-se sobre o contexto das obras que executam. Não basta conhecer profundamente a obra do ponto de vista técnico. Claro que isso é importante, mas não suficiente. É decisivo conhecer o processo criativo do compositor, mergulhar no seu universo intelectual (literário, artístico). Só assim se consegue o diferencial. E isso se faz pesquisando, lendo, atualizando-se continuamente.

Não conheço o pianista paulistano Fábio Martino, mas concluo tudo isso a partir do seu CD de estreia, gravado na Alemanha, para o selo Oehms, com peças de Johannes Brahms, Robert Schumann, Edino Krieger e York Höller. A gravação é consequência do segundo prêmio expressivo que ele conquistou em sua curta carreira, desta vez em Munique, em 2011: o Ton und Erklärung - Werkvermittlung in Musik und Wort (literalmente: Som e Explicação - contextualizando as obras em música e palavra).

Numa entrevista de anos atrás, Martino, que estudou por uma década na Fundação Magda Tagliaferro com Armando Fava Filho, descartava os concursos como ferramenta essencial para um pianista decolar na carreira internacional. Queimou a língua - queimei eu também, porque venho repetindo isso há algum tempo -, porque no caso dele foram justamente as duas vitórias em concursos que lhe garantem agora a visibilidade: em 2010, ele vencera o segundo concurso BNDES no Rio.

No concurso de Munique, o pianista não apenas toca: tem de previamente explicar aos distintos público e júri sua concepção da obra que vai interpretar. Comentá-la, de modo geral. Outra particularidade interessante: os concorrentes tiveram de estrear mundialmente uma peça para piano de compositor contemporâneo, e sem manter nenhum contato com o compositor.

Ao contrário de pianistas jovens, Martino assina todos os textos do disco da Oehms. E demonstra uma surpreendente articulação verbal, tão interessante quanto o seu toque diferenciado ao piano. Ao comentar, por exemplo, a sonata n.º 1, em dó maior, opus 1, de Brahms, que abre o CD, o pianista brasileiro vai além do convencional. Cita o famoso artigo de Schumann, Novos Caminhos, mas não lembra que ele o qualificou como a "jovem águia" de Hamburgo. Prefere destacar a expressão "sinfonia velada" que Schumann usa para a sonata. Nada mais verdadeiro, ela tem mesmo fôlego sinfônico. Já abre com um tema evocando a sonata Hammerklavier opus 106 de Beethoven, e depois, no Andante, evoca uma antiga canção de amor alemã. E o espanto com a qualidade do texto passa para o estado de perplexidade quando se ouve a madura leitura de Martino.

Os Três Estudos Intervalares do compositor catarinense Edino Krieger foram estreados pelo próprio Martino em 2010 no concurso do BNDES e agora ganham sua primeira gravação. Por sua interpretação, ele ganhou um prêmio específico. E brilha novamente agora, nestes estudos em segundas, terças e quartas, que soam melhor, como o pianista afirma no texto, quando ouvidos na sequência, sem interrupção. É Edino da melhor safra.

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Sigo o itinerário do CD porque esta ordem é de fato a melhor para ouvi-lo: Martino criou contrastes entre obras do século 19 e do século 21que quebram a monotonia às vezes inevitável em programas historicamente comprimidos. Assim, depois de Krieger, soam como oásis as três peças-fantasia opus 111, escritas por Schumann em 1851. Banhadas no mais puro lirismo romântico, contrastam com dois andamentos mais turbulentos nas pontas e praticamente um "lied" no centro. É o momento em que Martino mostra uma concisão correta, pois a própria partitura já exala uma sentimentalidade que não deve ser ressaltada.

A peça final, outra estreia mundial em disco, é do alemão de Colônia York Höller, que estudou com Zimmermann e Stockhausen, frequentou os cursos de Darmstadt e o IRCAM de Pierre Boulez em Paris. Pratica o que chama de "Gestalt komposition", uma espécie de serialismo livre desembocando num caldeirão que por momentos soa até tonal; em outros expande-se. Em todo caso, é música que consegue agradar já numa primeira audição sem ser abusadamente tonal. Um triunfo do compositor, que Martino reforça numa leitura convincente.

Este CD é o derradeiro empurrão para Fábio Martino assumir, daqui para a frente, uma importante carreira internacional. Agora, é acompanhá-lo com atenção.

Brahms, Krieger, Schumann, Höller Selo Oehms; US$ 9,99 (download)

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