Record reedita diário de Carlos Drummond de Andrade

O Observador no Escritório começou a ser escrito em 1943 e o último registro, o comovente Cartas do Velho, foi feito pelo poeta em setembro de 1977

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Por Agencia Estado
Atualização:

A melhor definição para o seu "diário irregular" foi, é claro, do próprio Carlos Drummond de Andrade: O Observador no Escritório, que sai agora, em reedição, pela Record (384 págs., R$ 39,90). Esse diário, escrito de forma assistemática, e em parte publicado posteriormente no Caderno B do Jornal do Brasil, vai de 1943 e termina em 1977. Nesse intervalo de tempo, vemos o poeta em sua dimensão de homem do mundo, com seu posto de observação fincado no recesso do escritório, comentando, de forma ativa, o que se passa tanto em sua intimidade como no mundo exterior. São, como ele diz na nota introdutória, "eco de um tempo abolido". Que revive, na pena do mestre. A primeira observação é de 15 de maio de 1943 e registra uma crítica de Paulo Mendes Campos, mineiro como ele, escritor como ele, a um poema seu. Paulo Mendes Campos se desculpa e espera compreensão pela ousadia. Drummond aceita e pondera que todas as restrições à sua obra (pois já era dono, então, de obra reconhecida) até então eram de "conservadores e reacionários", e que as críticas partidas "do lado de cá, de gente amiga e independente, alertam o espírito e impõem mais rigor". O último registro, de setembro de 1977, é comovente. Tem por título Cartas do Velho e é uma revisita de Drummond, já então com 75 anos, ao maço de correspondência deixado por seu pai. Nesse texto temos o melhor Drummond, meditativo e profundo, que enxerga no texto descarnado do velho pai, Carlos, algo que talvez (em sua opinião) nem ele próprio, escritor consagrado, havia conseguido: "o espírito ancestral, profundo, radicular, independente das gerações, imutável em sua permanência. Alguma coisa que talvez me falte, ou que não é tão intensa como deveria ser. Que só se descobre a custo, e tarde. Segredo e mistério das cartas menos pretensiosas." A relação do escritor Drummond com os escritos dos progenitores aparece várias vezes. Ele retorna tanto às cartas do pai como às da mãe, vendo nelas o que pode descobrir de suas origens. Ou talvez "descobrir" não seja o melhor termo, mas apenas a busca de mais um pretexto da reflexão sobre esse "mistério da família", da carne, expresso em mais de um poema de sua autoria. Já em 1950, com 48 anos, Drummond relê as cartas da mãe, dona Julieta, e evoca a figura ´apegada à família´ e o culto à memória do pai. Mas é de 1954 o texto emocionado, um dos mais profundos e trabalhados do volume, nova evocação da mãe, já morta: "Vou-me aproximando de ti porque envelheço, e minha vida volta às origens. Abençoa-me e acaricia-me, porque sou sempre criança a teus olhos, enquanto o velho em mim se confirma. E se dentro de mim existes, em ti também vou existindo, e nossas vidas se confundem, apesar do muito que te esqueço." Triste reflexão sobre a família e a memória, a velhice e a morte, na nota baixa da linguagem poética expressa em prosa. Mas se engana quem pensa que o tom dominante dos diários seja sempre esse, pensativo ou mesmo melancólico. Pelo contrário, os textos mostram um Drummond ativo em sua militância literária, contando casos engraçados, como os que acontecem em congressos de escritores, cujas dissidências eram resolvidas no bar, por exemplo no Pingüim, de Belo Horizonte. Lêem-se também as questões políticas, a aproximação com o Partido Comunista e depois a constatação de que não poderia gozar de liberdade estética se pertencesse àquela ou a qualquer outra agremiação. Por exemplo, em 1945, Samuel Wainer oferece ao poeta uma coluna diária de opinião política no jornal Diretrizes. Drummond hesita. E passa a refletir sobre um tema comum a intelectuais: o difícil trabalho de ser um homem de pensamento e ação ao mesmo tempo. A crise de consciência explode nesta passagem:/ "Posso entrar na militância sem me engajar num partido? Minha suspeita é que o partido, como forma obrigatória de engajamento, anula a liberdade de movimentos, a faculdade que tem o espírito de guiar-se por si mesmo e estabelecer ressalvas à orientação partidária. Nunca pertencerei a um partido, isto eu já decidi. Resta o problema da ação política em bases individualistas, como pretende a minha natureza. Há uma contradição insolúvel entre minhas idéias, ou o que suponho minhas idéias e talvez sejam apenas utopias consoladoras, e minha inaptidão para o sacrifício do ser particular, crítico e sensível, em proveito de uma verdade geral, impessoal, às vezes dura, senão impiedosa. Não quero ser um energúmeno, um sectário, um passional ou um frio domesticado, conduzido por palavras de ordem. Como posso convencer a outros , se não convenço a mim mesmo? Se a inexorabilidade, a malícia, a crueza, o oportunismo da ação política me desagradam, e eu, no fundo, quero ser um intelectual político sem experimentar as impurezas da ação política? Chega, vou dormir." Mas há espaço também para as pequenas coisas do dia-a-dia que - Drummond sabia muito bem - só são pequenas quando observadas a distância, e não por aqueles que as vivem. Assim, a morte de um cão, ou a doença de um gato, o Garrincha, ganham lugar nobre na escrita drummondiana, porque ocupavam esse espaço em sua emoção. Aliás, a impressão que se tem ao ler essas páginas é de que a distinção entre o grande e o pequeno, o alto e o baixo, o nobre e o "vil" só existe para fins didáticos. Na sensibilidade do artista esses extremos se equivalem, porque tudo é importante (ou nada o é), dependendo do efeito que causa sobre nós. Esse tipo de medida humana das coisas parece encontrar forma na famosa contenção, na economia de recursos de Drummond, tão elogiada pela crítica. Assim, é o próprio Carlos Drummond quem conta a historinha zen que tanto admira, e que lhe foi relatada por Manuel Bandeira através de um amigo: Um poeta japonês caprichou na feitura de um haicai, e o resultado foi este: "Sobre a neve a sombra das cerejeiras." Mostrou-o ao mestre, que comentou: "Tem cerejeira demais." Essa busca do mínimo, e a medida do pequeno como revelação do grande talvez o levem a transcrever como se fosse epifania uma fala de sua mulher Dolores, provavelmente porque pensa que, em sua maneira singela, ela encerra toda uma sabedoria e toda uma resignação diante do envelhecimento e da própria condição humana: "É uma grande coisa a gente, no fim da vida, ter dinheiro para comprar o de que precisa no dia-a-dia, como está acontecendo conosco", diz Dolores. Drummond dá razão à mulher e registra: "Encomendas avulsas de textos, e o dinheirinho certo da aposentadoria de funcionário e das crônicas no Correio da Manhã, se não autorizam fantasias, garantem, pelo menos, o cotidiano e certa paz." Vale por um poema. Ou vários.

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