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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Reaparece o Saci-Pererê

Ele é um dos personagens da série ‘Cidade Invisível’, que resgata lendas do folclore para discutir temas atuais

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Atualização:

Toda família que teve ancestrais morando em cidades do interior (na roça, como se dizia) conhece histórias. Cavalos que acordam com as crinas trançadas. Cozinhas que dormitaram imaculadas amanhecem reviradas. Roupas desaparecem do varal. Assobios são ouvidos na mata e ninguém consegue localizar sua origem. Porteiras que o proprietário tinha certeza de ter fechado aparecem abertas. Crianças apavoradas acordam aos berros de um sono tranquilo. Chapéus voam da cabeça de seus donos em dias sem vento. Lamparinas apagam do nada. Já ouviu uma dessas, estimado leitor e querida leitora? Conhece outras similares? Você certamente sabe de quem estou falando e conhece o autor de todas essas travessuras: o Saci-Pererê.

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A lenda é antiga demais para sabermos sua origem. Remonta ao sul do Brasil em tempos do fim do período colonial, com relatos escritos no século 19. O grande folclorista Câmara Cascudo via na saltitante personagem de uma perna só uma ode à mestiçagem que nos formou. A mestiçagem é um mito brasileiro muito poderoso, cheio de problemas. Tende a adocicar o passado, esvaziar os preconceitos do presente e deixar invisíveis outras origens que não as do tripé Indígenas, Europa e África como constitutivos de nossa origem como nação. A ideia comporta críticas por um lado, mas, por outro lado, é também inegável que um violento processo que misturou tradições de múltiplos continentes ocorreu em nosso território. O Saci é produto dela. Tem nome indígena tupi-guarani e está ligado a “olho doente”. Pererê tem o mesmo radical de perereca: saltar. Um louquinho saltitante seria uma tradução com liberdade literária. 

Cascudo fala-nos de o gorro vermelho, inconfundível, ter origem europeia. O caráter brincalhão também. Criaturas do norte de Portugal, como os trasgos, usavam um tipo de píleo vermelho que lhes dava poderes mágicos. Seria lusa também sua capacidade de se camuflar ou se transportar em redemoinhos. Desde o início da Modernidade, pelo menos, seres maléficos, diabólicos, podiam domar a esfera do ar e usá-la em seu benefício. Sim, nosso simpático herói é retratado, por vezes, não como um menino travesso, mas como um ente malvado.

Na versão pesquisada e imortalizada por Monteiro Lobato, o Saci conta a Pedrinho, perdido na escuridão da noite, o caso do “menino do pastoreio”, um escravo extremamente bondoso e diligente que, nas mãos de um senhor violento e explorador, conheceu a tortura e a morte. Juntos, os meninos exploram outros mitos do folclore nacional e presenciam uma reunião de muitos sacis, alguns minúsculos, que brotavam na mata como trêfegos pirilampos. Pedrinho não havia conquistado a amizade do Saci de maneira gratuita. Pelo contrário, tinha-lhe armado uma arapuca e surrupiado seu gorro. Quem domina o barrete de um saci transforma-o em escravo de suas vontades: espécie de gênio da lâmpada, o Pererê teria que servir a quem o capturasse em uma garrafa arrolhada de forma especial. Daí vem a maior herança da lenda do Saci: as relações perversas da memória da escravidão, da sujeição dos negros à vontade de proprietários brancos. Atos de rebeldia à ordem estabelecida tornam-se malandragem, pilantragem, malvadezas ou travessuras. 

Marco Pigossi em cena da série 'Cidade Invisível' Foto: Netflix/Divulgação

Recentemente, um seriado fez enorme sucesso em nosso país, amealhando espectadores mundo afora: Cidade Invisível de Carlos Saldanha. A trama explora a vida de um detetive da polícia florestal que, tragicamente, perde a esposa e se vê envolto em mistérios que não consegue explicar. Descobre, incrédulo, que lendas que ouvira quando criança, como a do boto, da Cuca, do Curupira e tantas outras, desfilam diante de seus olhos e são reais. Não foi a primeira vez que a TV levou nosso rico folclore ao vídeo, mas fazia tempo que ele andava na geladeira, no fundo da sacola de inspirações de roteiristas por aqui. A repercussão da série foi tamanha que uma segunda temporada foi rapidamente confirmada. Pedidos de norte-americanos e da crítica europeia, para que extras fossem produzidos explicando os contextos e que fornecessem mais informações sobre aquelas criaturas míticas, mostram o potencial do ramo. Pererê apareceu nos capítulos de Cidade Invisível como um jovem pobre e periférico, com prótese de perna. Um dos grandes trunfos da série foi criar uma alegoria com base folclórica para questões bastante atuais e controversas: qual o custo da vida moderna? Pode haver crescimento sustentável? O quanto a natureza é impactada pela pegada humana? Podem as comunidades tradicionais conviver (ou até mesmo sobreviver) com o avanço inescrupuloso de nosso meio de vida urbano e descartável? Para fazer essas perguntas, o seriado colige lendas brasileiras associadas à vida rural tradicional, bucólica, com pouca luz elétrica, comunidades ribeirinhas e quilombolas, aldeias indígenas ao assalto das grandes cidades que as engolem. As personagens saem das matas e passam a naufragar no mundo urbano. E o Saci foi vítima do processo. Pode enriquecer... se a ideia continuar a fazer sucesso, mas pode sucumbir ao enredo que o deixa num beco sem saídas. Há esperança para o Saci?

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 *Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, autor de A Coragem da Esperança, entre outros

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