Reality vai muito além da crítica às celebridades da TV

Longa do italiano Matteo Garrone discute o poder e a vitimização do indivíduo estimulado a perseguir sonhos

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Por Luiz Carlos Merten
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Na entrevista que deu ao Caderno 2, Matteo Garrone explicou o deslumbrante começo de Reality - A Grande Ilusão, que estreia hoje na cidade. A câmera, do alto, segue uma carruagem que se desloca pelas ruas de Nápoles. A trilha segue o barroquismo da imagem, que fica cada vez mais próxima, até que a carruagem chega a seu destino, e o espectador percebe que se trata de uma festa de casamento, na qual Luciano tenta se aproximar do homem que ficou célebre ao participar do Gran Fratello na TV. Reality começa assim, em tom de fábula, e Garrone explicou por quê."Gomorra, que adaptei do livro de Roberto Saviano, era um filme realista. Mas não queria repetir a forma em Reality, até porque, para mim, esse filme é uma fábula moderna e a fábula, por definição, não é realista. Usa a ficção alegórica para propor uma verdade ou reflexão de ordem moral, com intervenções de pessoas e animais. Achei que seria um bom começo colocar o público no tom por meio dessa carruagem, que leva uma princesa que está se casando." É como se o espectador entrasse no plano de uma outra realidade e, depois, quando Luciano passa a delirar e perde a noção do real, o diretor cria outra cena que, na verdade, é o contraponto da primeira - o ângulo do inseto, quando o herói delirante se estabelece como anti-herói.Reality ganhou o prêmio do júri no Festival de Cannes do ano passado, mas muita gente não se conformou que Nanni Moretti, querendo premiar um italiano, tenha outorgado o troféu a Garrone, quando o certo talvez fosse destacar o trabalho de Aniello Arena, que faz Luciano. No Festival de Berlim de 2012, outro júri já atribuíra o Urso de Ouro a César Deve Morrer, em que os irmãos Taviani mostraram um grupo de internos, numa cadeia, montando a peça (Júlio César) de Shakespeare. Arena também é presidiário e integra um grupo de teatro no cárcere de Volterra. Garrone, filho de Nico Garrone - importante crítico de teatro na Itália -, criou-se vendo o pai avaliar (e avalizar) o trabalho de atores. Ao Caderno 2, ele disse que seu pai teria amado Aniello Arena.Se a Justiça o autorizou a filmar, não o liberou para viajar ao exterior. Arena não foi a Cannes, onde seu triunfo teria sido imediato. Ele é extraordinário no papel desse homem consumido pelo sonho. Em Gomorra, Garrone já filmara a dinâmica de poder na Máfia napolitana - a Camorra -, a partir da raia miúda, os soldados que compõem a camada mais baixa dentro da organização. Em Reality, o personagem é esse vendedor de peixe que tenta comprar um sonho. A base da história é real e ocorreu com um parente da companheira do cineasta. Luciano, na visão de Garrone, é um ingênuo que perde a identidade tentando realizar o sonho de ficar célebre. É - como define Garrone - um ser pirandelliano, um personagem em busca de um autor, como na peça famosa de Luigi Pirandello.Um personagem com essa dimensão de patetismo poderia ser alvo de uma crítica devastadora. Garrone, porém, não se coloca numa situação de superioridade. Ambos são sonhadores que lutam, em diferentes níveis, contra um sistema que é, basicamente, consumista e vende sonhos possíveis de se comprar. A felicidade, hoje, para a maioria das pessoas, diz o diretor, é representada por bens de consumo. Uma cena particularmente forte de Reality é aquela em que Luciano, tentando convencer a direção da TV que é um bom homem e merece uma chance, se desprende, franciscanamente, de seus bens. Desde Cannes, a maioria da crítica define Reality como um filme sobre a TV na terra de Silvio Berlusconi - e sobre o Gran Fratello, o Grande Irmão, o Big Brother de lá. É tudo o que Garrone não quer. Reality extrapola o limite da TV. É sobre a desintegração da família, sobre como, na sociedade da imagem, o Estado erige uma espécie de espetáculo do poder, para fascinar e corromper as pessoas. Garrone transforma esse horror em fábula para expressar sua compaixão pela humanidade. É um belíssimo filme.

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