
24 de março de 2014 | 02h07
Na minha sala, vejo, pela BBC, cujo cinegrafista evadiu a intimidação de trogloditas mascarados confiscando imagens nos cartões de memória, um tanque russo destruir o portão da base de Belbek, onde soldados ucranianos passaram três semanas num limbo assustador. O corajoso de verdade da invasão, o comandante da base, Coronel Yuliy Mamchur, foi levado preso por forças especiais russas e sumiu, depois de um discurso eloquente que terminou com seus comandados cantando o hino nacional da Ucrânia, em meio à cerimônia humilhante da rendição.
A popularidade de Vladimir Putin dispara com a invasão da Crimeia que, a União Europeia teme, é o começo de uma aventura militar mais ambiciosa. Ele diz - e a grande maioria da população acredita - que forças neonazistas ameaçavam a população étnica russa na Ucrânia. Lá em Kiev e aqui em Manhattan nós sabemos que é mentira, mas de que adianta? A Ucrânia tem movimentos nacionalistas de direita há anos. Os russos étnicos no Leste da Ucrânia são insatisfeitos desde o colapso da União Soviética.
Mas a fabricação de uma realidade para justificar a invasão de um país é um triunfo que ninguém pode tomar do presidente que reimaginou um regime semiditatorial sob a marca "democracia soberana".
Na bolha imperial do Vladimir, um âncora de TV goza de liberdade para sugerir que os Estados Unidos podem ser reduzidos a pó. Pó radiativo. O mesmo "jornalista" ensina ao público: a independência americana da Grã-Bretanha não é legítima. O Kremlin divulga uma petição pela retomada do Alasca. Seria cômico se não fosse trágico, num país onde Stalin matou de 20 a 60 milhões, dependendo do historiador, e, graças a Putin, foi reabilitado em livros escolares.
O que me leva a um fracasso, não de propaganda, mas de jornalismo. A cobertura do desaparecimento do Boeing da Malaysia Airlines adquiriu um tom quase pornográfico, à medida que canais de notícias americanos passaram a dedicar a maior parte das horas no ar ao evento que, até o momento em que fecho a coluna, tem poucos fatos comprovados. A culpa maior recai sobre a CNN, que nomeou um ex-executivo de entretenimento da NBC para aplicar respiração boca a boca no seu desempenho de audiência, em declínio há anos.
Enquanto Vladimir Putin virava ao avesso a ordem internacional do final da Guerra Fria, a CNN nos trazia a noiva de um passageiro cujo sexto sentido lhe informava que o avião pousou em segurança em algum lugar e seu amado está vivo.
Deixemos de lado, por um momento, a crueldade de explorar o luto de uma pessoa visivelmente abalada, estimulando a exposição gratuita ao voyeurismo internacional. Deixemos de lado a nossa curiosidade natural com um mistério desta dimensão. No século 21, não esperamos que um Boeing 777 possa desaparecer. Tenho dificuldade de imaginar a mídia pré-ruptura digital relegando a queda do Muro de Berlim ao segundo plano por causa dos números de audiência. Sim, boa parte da cobertura exclusiva e de qualidade na Crimeia partiu de repórteres intrépidos trabalhando para a mídia digital. Mas, ao abrir mão de destacar a importância do que acontece na Ucrânia, de articular uma narrativa acessível para uma situação complexa, parte da mídia americana se torna cúmplice de Vladimir Putin. A propaganda precisa de um vácuo para triunfar.
Mas a propaganda precisa de algo mais e isto vale para qualquer país onde governantes respondem aos fatos esperneando com slogans. O historiador de Stanford Michael McFaul ocupou a embaixada americana em Moscou de 2012 até o começo deste ano. Lá, proibido de aparecer na mídia controlada pelo Kremlin, ele foi testemunha da demonização de tudo que é associado aos Estados Unidos na era Putin. Um exemplo: O tunisiano que se imolou no evento inicial da Primavera Árabe foi coagido pela CIA.
Difundir qualquer narrativa conspiratória é possível, mesmo na era da internet e da divulgação instantânea via mídia social. Fazer um inimigo de espantalho é fácil. Mas a reação à propaganda é, por natureza, não reflexiva, responde ao que chamam hoje de confirmação de preconceito. Ao longo do tempo, quando a realidade adversa atinge o público e não pode ser enfrentada com slogans, a retaliação é inevitável. E isto vale tanto para Caracas como Moscou.
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