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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Re-sentir

O espaço de ouro do ressentido é o mundo agressivo das redes, onde a covardia pode vir do anonimato

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Atualização:

Alguns “ismos” colaboraram: Cristianismo, Islamismo, Socialismos... As redes sociais e a própria evolução da ideia de Democracia também ajudaram a ladrilhar este chão. Do que estou falando? Da construção de uma ordem simbólica baseada na ideia de igualdade. Se existe diferença social, ela teria sido baseada no pecado ou na construção de mecanismos injustos de exclusão econômica. Porém, no fundo, todos seríamos ou deveríamos ser iguais. A igualdade é concebida como a realidade e a desigualdade como uma anomalia produzida pelo desvio de um plano natural ou divino.  Para Rousseau, temos uma perfectibilidade que, juntamente com a liberdade, permite nossa distinção dos animais. Claro, o homem de Genebra também percebe que essa característica é fonte de quase toda infelicidade. Criamos um contrato social e, ao mesmo tempo, a desigualdade. Alguém se apropriou de uma parte da terra comum e ninguém o contestou. Em Rousseau, em Marx ou em Jesus, a igualdade era o plano original e feliz. Houve um desvio ou uma queda do homem natural para o que vemos agora.  Proposta por filósofos, defendida por profetas e estimulada por brechas abertas a partir da Revolução Francesa, paira sempre a ordem simbólica ideal da igualdade. O que mudou? O mundo é desigual há milênios, porém, agora, há redes sociais.  Há mais de 200 anos, se o povo quisesse ver Versalhes, teria de invadir o palácio em gesto com sangue e ousadia. Hoje, Maria Antonieta posta seus looks nas redes todos os dias: “Eu no Salão dos Espelhos com meus sapatos novos kkkkk”; “Sextei com brioches”... A vaidade, o interesse, a dor e toda espécie de novas formas de imaginário social elaboraram a explosão do ressentimento. 

Muitas vezes, Maria Antonieta nos irrita porque gostaríamos de comer brioches em ambiente luxuoso Foto: Maria Antonieta em pintura de Élisabeth-Louise Vigée-Le Brun

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Ressentido é quem sente duas vezes. Sente pelo que não possui e tem nova dor pela alegria que identifica naquele que tem. Freud falou sobre a “covardia moral do neurótico”. O neurótico se considera superior, moralmente acima da vulgaridade do mundo, todavia, incapaz de mudá-lo. Não perdoa, não age, apenas sente e, ressente. O espaço de ouro para o ressentido é o mundo agressivo das redes. Lá, a covardia pode vir com anonimato, destilar veneno, atacar, agredir e mostrar como o meu inimigo é inferior e imbecil. O que deriva disso? Nada, é uma impotência reconhecida, diluída na incapacidade de o ressentido assumir seu próprio desejo e de agir.  Veja uma distinção importante: existe desigualdade no mundo. Há pessoas que se revoltam contra ela e agem para mudá-la. Caridade, política, revolução: são três caminhos comuns de reação à carência de muitos. Há outros. Penso em quem não age, reflito sobre o ressentido. Ele interpreta a felicidade alheia como retirada dele. Aquele que sorri, no fundo, retirou do meu rosto a alegria. O bom corpo dela/dele estragou o meu. A viagem bonita foi feita em detrimento da minha. A vida que vejo na internet foi roubada de mim. Posso perdoar você por tudo, menos por ser mais feliz do que eu.  De novo: existe desigualdade social e algumas pessoas agem contra. O ressentido não está preocupado com ela, ele está irritado com o gozo material ou emocional que vê nas redes. Todavia, ele disfarça sua dor em julgamentos sociais. Alguém postou a compra de um celular de dois mil dólares? O ressentido grita: daria muitas cestas básicas para uma comunidade. Ele tem razão, e o celular que o ressentido usa para isso também poderia virar feijão para muita gente. Essa é a diferença entre consciência social e ressentimento, entre ação e pura dor, entre sentimento e ressentimento.  A pessoa que luta por justiça social, por motivos filosóficos ou religiosos, fica perturbada pelo fato de que alguns possam ter um tênis caríssimo e tantos não tenham comida mínima. O ressentido quer o tênis para ele e, não conseguindo, nega-o a qualquer pessoa. Muitos movimentos políticos foram feitos assim: substituir uma forma de dominação que não me beneficiava por uma que me traga vantagens. Claro: tudo em nome do bem... Separar Freud de Marx pode ser necessário. A dor pessoal pode ser um ponto de partida para qualquer envolvimento político, nunca deveria ser o de chegada. Muitas vezes, Maria Antonieta nos irrita porque gostaríamos de comer brioches no ambiente luxuoso. Como isso é feio como sentimento, melhor afirmar que buscamos a justiça social e a igualdade. O ressentido é um invejoso fracassado tingido com o verniz de Madre Teresa de Calcutá. A busca de uma genuína melhoria da dor alheia por empatia pura é tão rara na luta política como a vocação da freira albanesa na Índia no campo religioso.  Ampliemos. Fui uma criança em uma geração limitada com regras severas e punições diretas. Por que será que crianças mimadas me irritam hoje? Vivem o deleite que me foi negado?  Conhecer a si é o desafio que o Templo de Apolo em Delfos nos envia sempre. Pelo menos saberíamos que estamos lutando com moinhos reais e não gigantes alimentados pela minha dor quixotesca. Essa tem sido a minha esperança: lutar com a minha dor de forma consciente e não ser dominado pelo que me incomoda.

* Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de A Coragem da Esperança, entre outros

Opinião por Leandro Karnal
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