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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Raízes

Sim, é muito mais fácil traçar genealogias brancas do que negras na memória brasileira

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Atualização:

Jovem estudante de história, entrevistei familiares sobre a memória dos ancestrais. Anotei tudo em longas folhas de almaço coladas (será que ainda existe papel almaço no mundo?). Também fiz legendas de fotos antigas. Ainda tinha uma avó viva e minha mãe ajudou com muitos dados. Tudo foi guardado em uma pasta vermelha e repousou por uma década e meia. 

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Morando em São Paulo, retomei a pasta e descobri programas na internet para montar árvore genealógica. Dediquei mais algum tempo e cheguei a fazer um site de coleta de dados. Os dados cresceram muito. Após um novo “surto genealógico”, tudo foi guardado novamente, em meio a outras tarefas mais urgentes.

A pandemia estimulou o retorno ao estudo das raízes. Não havia mais fontes pessoais. Reorganizei em novo site que, para minha surpresa, foi encontrando novos dados sem minha interferência. Árvores feitas por outras pessoas foram sendo cruzadas com a minha. O trabalho deu um salto de uma forma quase automática. Todos os dias, havia uma descoberta para eu confirmar. Retrocedi ao século 16 com parentes em pleno Renascimento.

Quero compartilhar alguns dados e reflexões de sentido mais geral. Não tenho ancestrais famosos. A árvore da família é mais difícil com pessoas comuns. Estou em melhor situação do que muitos brasileiros que, tendo ancestrais africanos ou pessoas escravizadas, esbarram em obstáculos ditados pelo apagamento da memória familiar em meio ao trabalho compulsório. Sim, é muito mais fácil traçar genealogias brancas do que negras na memória brasileira. Nossa desigualdade não é apenas presente, tem raízes genealógicas. 

Árvore é usada como símbolo do estudo da genealogia familiar Foto: Pixabay / @FelixMittermeier

Problemas para nós, genealogistas amadores? Há pessoas que casam mais de uma vez. Isso complica um pouco. Existem dados conflitantes na internet. Uma ancestral minha aparece com 116 anos. Possível? Sim. Provável? Não. Outro drama entre Karnais: o hábito de dar ao primogênito o nome de Oscar Francisco e, na geração seguinte, Francisco Oscar. Da mesma forma, surge a tradição do nome Antonieta para a mais velha. 

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Há mistérios: Karnais nos EUA são judeus, com heróis de guerra em túmulos assinalados com estrela de Davi (site billiongraves). Parece que o navio dividia credos: quem ia para os EUA era de ascendência judaica, quem vinha para o Brasil, cristão. Como explicar isso? Nenhuma pista até agora.

O mais impressionante para mim é a quantidade de sobrenomes que, direta e indiretamente, constituem meu mosaico genético. Exemplos: Sou Karnal por pai, Schlusen por mãe. Meu pai era Karnal e Hacker (o hoje bizarro sobrenome de solteira da minha avó Edyth). Minha bisavó paterna era Josephina Hacker e se casou duas vezes (também foi Stumpf por matrimônio e Matte de solteira). Minha mãe era Schlusen (família luterana) e Córdova (minha avó materna, católica). 

Um dos muitos Francisco Oscar da família se casou com uma Antonietta de Borba e Costa, no verão de 1887, na igreja Nossa Senhora Madre de Deus, em Porto Alegre. Minha trisavó Antonietta tinha ancestrais açorianos: Costa, Dias, Borba, Machado, Lopes, Lemos e Ferreira. 

Fatos que eu conhecia como historiador e nunca tinha verificado na própria família: muitas crianças durando poucos dias ou alguns meses. Minha bisavó Antonietta (1867-1950) gerou Oscarlinda Karnal, que morreu no ano em que nasceu. Logo após a morte da primogênita, gerou gêmeos (Nilo e Murilo Karnal), ambos falecidos em 1890. No total, a mãe do meu avô Carlos teve 14 gestações, 15 filhos. Como tantas mulheres da sua época, minha parente quase nunca menstruava: emendou gravidezes com a menopausa.

Retrocedo mais. Johan Martin Karnal nasceu na Alemanha (1799) e morreu no Brasil. Seu filho, Josef Robert Karnal, também nasceu além do Reno (1835). Aqui, as tribos germânicas karnalescas se cruzam com godos de toda sorte: Kern, Konrath, Bauerman, Heiderich, Dickman, Westendorff, Müller, Kraemer, Bloss, Kunz, Ludwig, Schnneider e outros 16 sobrenomes na árvore. Analisando a árvore, dá a sensação de que, se você come chucrute, é primo. 

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Fiz o segundo teste genético e apareceu o que eu esperava: Alemanha, Europa Central e Península Ibérica nas origens. Uma surpresa: identificaram genes britânicos, ainda que nenhum parente pareça ter cruzado o Canal da Mancha. Por fim, o mais divertido: 0,8% de genes tinham origem no... Nepal! Qual Karnal teria tido um ataque de luxúria em Katmandu? Creio que eu nunca saberei, afinal, árvores genealógicas registram informações cartoriais e não revelam muitos segredos de alcova. 

Em resumo, minha queridíssima leitora e estimadíssimo leitor, somos parentes, com certeza. Se você fizer sua pesquisa, vai me chamar, no mínimo, de primo. Quem sabe alguém com um lindo rosto do Himalaia ainda esteja próximo de mim? Uma boa semana a todos os seres humanos que, no fundo, são da família. Eu sou um puro descendente da... humanidade. 

* Leandro Karnal é historiador, escritor, membro da academia brasileira de letras, autor de O Dilema do Porco Espinho, entre outros.

Opinião por Leandro Karnal
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