Rainha do Saara

Cenário reservado ao seu próximo filme, o centro popular de comércio do Rio rendeu à atriz, fã da muvuca local, a gravação de um especial natalino

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Por Patrícia Villalba/ RIO
Atualização:

É tradição que conto de Natal tenha como palco paisagens cheias de neve, castelos e casas com lareira acesa. Mas Regina Casé, figura que não é de se apegar aos clichês, foi balançar seus sinos e enrolar seu pisca-pisca no Saara, região de comércio popular no centro do Rio, onde a temperatura e a criatividade são tradicionalmente elevadas. Em Papai Noel Existe, programa especial que a Globo exibe no dia 22, às 22h15, ela interpreta Francis, vendedora tipicamente carioca que está de trelelê com Robson, um camelô – incrível – vivido por Rodrigo Santoro.

 

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O Estado foi encontrar Regina e sua equipe no meio das pequenas lojas do Saara, que abriram no meio da noite especialmente para servir de cenário para a gravação do especial. Ali, impossível não se surpreender diante de um Rodrigo Santoro quase irreconhecível, que esperava tranquilo o momento de gravar, sem que quase ninguém lhe pedisse um autógrafo ou que posasse para uma foto. A muvuca, para usar um termo de que ela gosta, começou quando Regina, verdadeira rainha do Saara, pisou no set. Aqui, trechos da conversa que tivemos no ônibus-camarim, quando o público ainda não sabia que ela estava por perto:

 

 

A gente pode classificar esse especial como um "conto de Natal"?

 

Sim, e eu acho bacana que seja assim. Antigamente, até os sambistas – como o Assis Valente com Anoiteceu, aquela do "eu pensei que todo mundo fosse filho de Papai Noel..." – faziam música para o Natal e para o São João. Acho linda essa ideia de comemorar todas as datas, é uma maneira de fazer festa com todo mundo. E eu acho bacana fazer um programa de Natal, que fale de Natal e que as pessoas vejam nessa época. Então, é intencionalmente um conto de Natal.

 

 

E como surgiu a ideia de fazer isso justamente aqui, no Saara?

 

Tem um filme que eu e o Estevão Ciavatta, também diretor desse programa, estamos trabalhando há um tempão, chamado Saara. Há cinco anos a gente vem aqui direto pra isso. Já está tudo certo para começar a rodar no ano que vem. Mas conversando com o Guel (Arraes, diretor de núcleo da Globo) chegamos à conclusão de que o material do Saara é tão rico que dá mais que um filme. A gente ficou pensando em fazer uma série, mas em que ordem? Primeiro o filme? E como a gente vai começar um outro programa em 2 de janeiro, não queríamos esperar fazer o filme para depois fazer o programa de TV. Estávamos transbordando de ideias e não dava para fazer a série agora. Foi aí que nasceu o especial, para pelo menos dar um gostinho e gastar algumas ideias. Porque guardar ideia na gaveta não é bom, mofa.

 

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A Francis, sua personagem, é a mesma do filme? Como ela é?

 

Sim. Ela é uma vendedora clássica do Saara, que vende bem pra caramba. É um tipo de personagem que existe por aí, como aquela empregada que manda na patroa, sabe? Inventa mil promoções, maneiras de arrumar a loja, é desse tipo. É despachadona, conhece todo mundo. Ela é romântica, mas também é brava, marrenta.

 

 

Você já gravou aqui no Saara várias vezes, não?

 

Milhões de vezes! Venho aqui duas vezes por semana, é um dos lugares do Rio de que eu mais gosto, mais do que praia. Adoro. Primeiro, porque é um lugar onde não entra carro, então você anda em outro ritmo. É um lugar que traz pessoas de todos os lugares do Rio, que ainda tem aquela noção de centro que cada vez mais está se perdendo. É um lugar de comércio popular que muda o ano inteiro conforme a data – se é Natal, São João ou Cosme e Damião... Tem umas lojas que eu acho que sou eu que mantenho (risos). Qualquer aniversário de amigo, venho aqui encomendar uma caneca ou um pratinho com borda dourada. Acho bacana que a maioria das lojas aqui é de artigos para festa, são lojas pra festejar. Então, as pessoas estão sempre animadas. Qualquer coisa que aconteça na política, no dia seguinte já estão vendendo aqui a máscara (da personalidade envolvida)... Na época do Caminho das Índias, o Saara inteiro virou indiano! É um lugar que transborda o novo, a vontade de brilhar.

 

 

É como a 25 de Março em São Paulo.

 

A 25, conheço bem também a Ladeira Porto Geral, é bacana, mas entra carro. Isso muda um pouco. Aqui tem uma coisa mais aconchegante, numa área mais antiga. Parece que você está numa época antiga, apesar de que aqui tem sempre o último grito, o que vem com tudo. É muito engraçado.

 

 

A Francis é uma figura que você conheceu aqui em algum momento?

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Não... Ela é um Maracanã de garotas e mulheres mais velhas. Ela tem de 15 a 60 anos. Antes do (filme) Eu, Tu, Eles, eu tinha feito 11 anos de Brasil Legal. Quando fui fazer a Darlene, ela era um inventário dessas mulheres do interior do Brasil que eu tinha observado durante anos e não sabia o que fazer com todas aquelas informações. Aqui, com a Francis, uso o que recolhi no Minha Periferia e Central da Periferia. Às vezes troco uma frase pela outra, uso uma gíria, crio a maneira com que ela paquera... Tudo é uma reunião de mulheres bem urbanas, da periferia. É uma sorte quando calha de aparecer um personagem de ficção onde você pode pôr um monte de coisas que vinha trabalhando na área documental. É uma delícia, fico quase infantilmente eufórica. Mexi em quase todas as frases do roteiro. Depois que eles (o roteiro é de Guel Arraes, Estevão Ciavatta, Péricles Barros e Patrícia Andrade) escreveram tudo, falei "bom, agora vou botar do jeito que se fala de verdade" (risos).

 

 

Você sempre foi assim, tão observadora?

 

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Quando tinha cinco anos de idade, era igualzinha a essa pessoa aqui. A minha mãe me contou que eu era famosíssima quando tinha cinco anos. Na feira, todo mundo sabia meu nome. Sempre conversei muito com qualquer pessoa na rua. Eu até era mais para o lado documental do que para o de atriz. Esse negócio de comunicar e de contar vem de longe. Mas a sua maior virtude também é seu maior defeito: não posso fazer nada sozinha. Posso fazer a viagem mais maravilhosa, ficar de frente ao Taj Mahal, mas não tem nenhum valor pra mim se eu não tiver alguém do meu lado para poder comentar na hora. É o reverso da moeda.

 

 

Você hoje se vê como uma autora das personagens que representa?

 

Sem dúvida. E eu descobri que vinha fazendo isso há anos, e podia ser um comercial. Eu chegava para gravar e tentava fazer a coisa que estava escrita, mas não dava certo e o diretor acaba dizendo "faz alguma coisa mais Regina Casé", e eu ficava um tempão botava uns cacos. A grande mudança foi por causa do Fernando Meirelles, que me disse "Regina, você já escreve e dirige há anos, mas não assina o roteiro nem a direção e fica tentando fazer subversivamente". Daí, ele me chamou na primeira temporada do Cidade dos Homens (2002) e generosamente dirigiu comigo. A partir daí, eu escrevi e dirigi. Adorei, foi uma das experiências mais felizes que eu já tive. Tenho um orgulho danado. Tem um episódio em especial, da terceira temporada, que chama Pais e Filhos, que eu amo. É como se tivesse feito um longa. Não me importa que tenha passado só um dia na televisão.

 

 

Você foi uma das primeiras, que levou a periferia para a televisão de uma maneira diferente, alegre, de celebração. E hoje a periferia está na moda. Se sente responsável por isso?

 

Acho que muitas mudanças se operaram muito rapidamente e ao mesmo tempo. Tenho muito orgulho e acho que realmente nós – não eu, mas o grupo que trabalho comigo – fomos os primeiros. Mas tem uma coisa que é genuína: quando eu levo um DJ ou um sambista num programa meu e eu digo "esse é meu amigo DJ Malboro" ou "esse é meu amigo Zeca Pagodinho", é porque é meu amigo mesmo – conheço a mãe, o pai, os filhos dele. Às vezes, quando você quer dar audiência na televisão, leva atrações que acredita que sejam populares, como aquela música que acaba de estourar. Mas muitas vezes, você não gosta daquilo de verdade, levam porque acha que os outros gostam. Não é assim?

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Sim, dá pra perceber...

 

Então... O grande diferencial que fez os programas da gente ficarem tão afirmativos é que tanto eu quanto o Hermano (Viana, antropólogo) temos contato com isso faz tempo. Em 1989, ele escreveu uma tese que já era sobre o funk carioca. O primeiro Brasil Legal, em 1991, era todo sobre funk. Então quando eu chamo o DJ Malboro de amigo, é porque convivo com ele há pelo menos 20 anos. O que leva a essa coisa genuína é a gente gostar mesmo. Quer ver uma coisa que eu acho que vai ter de mudar? Conheço muita gente que se diz meio comunista, que fala que tudo é pelo povo, mas tem horror de pagode, de funk, e "ah, essas letras horrorosas, esse cabelo que estão usando, que coisa horrível". Mas aquilo é o melhor que o povo pode fazer com a escola que ele tem, o dinheiro e a tradição que ele tem. Aquilo é a verdade, o real. Acho ótimo que as crianças da favela toquem violino e piano. Mas não acredito em quem diz que gosta do povo e detesta brega, pagode, funk. Como você ama o povo e não gosta de nada do que ele produz?

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