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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Quinze meses e onze contos de réis

Qual o custo do amor? Ou ainda, por que amamos? Pode o amor ser gratuito?

Atualização:

Amor tem preço ou duração? Machado de Assis, quando escreveu o genial Memórias Póstumas de Brás Cubas, imaginou um autor que, já morto, narrava sua passagem pelo planeta. Por ser defunto, contava sem preocupações mundanas, sem a mesma noção de moral daqueles que ainda estão vivos. Inevitavelmente mais ácido do que a maioria de nós, sarcástico e profundamente irônico, Brás fala de sua infância de elite no Rio de Janeiro, quando montava um negro, Prudêncio, apenas porque o via como um brinquedo. Rapazote, teve um romance com uma cortesã, Marcela. Machado não nos revela muitos detalhes da moça, nem a caracteriza como uma embusteira elaborada. Porém, quando o pai do protagonista descobre o caso entre os dois, encerra-o com ameaças de mandá-lo a Coimbra, para que ele se fizesse um homem de verdade. Nesse momento, no fim do enlace, vem a frase sobre a qual quero pensar hoje com você, querida leitora, estimado leitor: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos”. Ou seja, nem menos amor, nem menos tempo, nem menos dinheiro (que não foi pouco: um conto de réis à época do romance – década de 1880 – comprava quase um quilo de ouro).

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Tal como Machado, não me interessa julgar o amor de Brás Cubas e Marcela para além da ironia com que foi escrito. Seria fácil cairmos em lugares-comuns, na ideia da abnegação do amor verdadeiro, em como poderíamos jogar a primeira pedra na Maria Madalena em questão. Fácil e equivocado. Meu ponto é: qual o custo do amor? Ou ainda, por que amamos? Há um tabu contido na citação de Machado: pagar por amor é algo errado, distorcido. No século 17, Sóror Juana Inés de la Cruz, em Homens Tolos, já percebia a ironia desse raciocínio moralista, e escrevia sobre o universo masculino, aquele de onde partia o falso moralismo: “Às amantes que mantêm/ lhes dão asas sem domá-las,/e após mal acostumá-las/querem encontrá-las bem./ Qual é mais de se culpar,/ ainda que ambos seu mal tragam:/ a que peca porque pagam/ ou o que paga por pecar?”.

Existe amor gratuito? Vamos a outro exemplo religioso. Na oração atribuída a São Francisco, o narrador nos fala: é dando que se recebe e é morrendo que se vive para a vida eterna. Não seria esse o maior negócio de todos? O santo prega que eu seja um evérgeta (o doador público romano que esperava reconhecimento social e político) sem a menor sutileza: doo, me doo, me condoo justamente porque sei que, ao beneficiar o próximo e a comunidade, beneficio a mim mesmo. Minha recompensa: a Salvação! O maior de todos os recebimentos em uma lógica cristã. Logo, qual a minha diferença para Marcela? A felicidade para sempre supera a de quinze meses? 

Nossas formas de amor seriam todas com venalidade? Os gregos falavam de amor com diversos sentidos. Um como desejo; amamos aquilo/aquela pessoa que desejamos. Amor como fixação. Como na música de Vanessa da Mata, Bolsa de Grife, compramos algo para nos livrar de algum mal, daquilo que nos aflige, para preencher o buraco na alma. Ao fim, temos a bolsa, a angústia e as prestações para pagar. Mas até ter o objeto de desejo, desejei muito. Esse amor-desejo é um amor egoísta: gosto do que desejo, desejo o que gosto (e não tenho). Uma segunda forma, o amor-amizade, é aparentemente mais altruísta, pois amo outra pessoa pelo que ela é. O alvo de meu afeto é uma pessoa especial, alguém com quem tudo partilho e pode partilhar tudo comigo. Um amor entre iguais. Pensamos de forma similar, temos interesses próximos. Amo meu espelho. Se amo o que é igual, o alvo é meu espelho. Toleram-se imperfeições no espelho, desde que ele me reflita. O amor-amizade é amor com interesse próprio.

No mundo helenístico romanizado da antiga palestina judaica, o Nazareno falou de um amor ao próximo. Amor-doação oposto a amor-leasing. Ame o próximo seja ele quem for. Ame o diferente, o fariseu, o inimigo, pois somos todos iguais na Criação. Amor mais complexo, porém, para que fosse compreendido e praticado, veio com um adendo: ame o próximo como a ti mesmo. Sem amar a si como medida primeira, como amar o próximo? Além disso, devo amar Deus acima de tudo e todos. Assim, ganho eu, sozinho, a chance da Salvação. Seria o amor cristão um amor com toma lá, dá cá?

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De Shakespeare a Goethe, fomos transformando o amor em um objeto cortesão, idealizado, feito para ser vivido intensamente por Romeus, Julietas, Madamas Butterflies e Werthers. Cada dificuldade aumenta o desejo dos amantes, eles vivem em desequilíbrio, só parecem respirar quando estão com seus objetos de veneração, vivem tudo com uma intensidade desmedida. Em uma semana ou durante um largo tempo, o amor consome os amantes. Na impossibilidade do outro, o suicídio. Ou tenho tudo o que quero ou nada quero. O amor é meu e, se o benefício dele não for como eu imagino, suprimo minha própria vida. Um pouco de Freud não faria mal a esses jovens narcísicos e autocentrados (que habitam muitos de nós). 

O cinismo desencantado do fim do 19 e de boa parte do 20 pôs em xeque esse amor-cortês-romântico. O amor líquido atual partilha da velocidade, do narciso robusto, do excesso de necessidade de recompensar a mim mesmo. Mas termina com um clique ou uma bloqueada na rede social. Matamos o outro no amor-líquido. Não me serve, elimino. Sai o suicídio e entra o bloquear. 

Alguém ainda podia sugerir: mas tem o amor materno! Esse seria inteiramente gratuito. Ainda assim, umas das frases mais ouvidas dos pais, quando desapontados, é: “Não sei como você pode fazer isso comigo”. É algo para pensar. 

Pode o amor ser gratuito? O que seria gratuito no amor? Onze contos por quinze meses seriam mais barato? Você ama de graça? Bom domingo a todos.

Opinião por Leandro Karnal
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