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Questões de tamanho

É uma foto antiga, já cinquentenária. Exumada de seus implacáveis arquivos, meu amigo Jaime Prado Gouvêa postou-a, faz uns dias, em sua página no Facebook, ele que raramente dá ali as caras virtuais.

Por Humberto Werneck
Atualização:

A imagem, em preto e branco, mostra um time de basquete, juvenis do Minas Tênis Clube. Lá estamos, o Jaime e eu, ele em pé, fisionomia séria, eu agachado a sua frente, com um quase sorriso que destoa da unânime circunspecção. O esgar tem motivação etílica, pois, momentos antes, no restaurante do clube, demos cabo de uma feijoada, durante a qual o moleque de 17 anos engorgitou quantidades insensatas de cerveja. Sem repressão nem sentimento de culpa, uma vez que, embora uniformizados na foto, não vamos jogar bola. É só encenação para um registro fotográfico.

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Revisto hoje, 53 anos depois, sei que há motivações além-cerveja no sorriso. Carregado de eventos fortes, aquele sábado, 24 de novembro de 1962, foi para mim um dia especial. Pela manhã, tive nas mãos meu primeiro texto impresso, gaiatice intitulada Férias no Paraíso e publicada em A Inúbia, jornalzinho do meu colégio que tinha para o estreante a honrosa circunstância de ter sido criado, muitos anos antes, pelo aluno Fernando Sabino. À noite, começaria um namoro que, com idas e vindas, durou mais de 6 anos. Por fim, era a última vez que eu vestia um uniforme esportivo.

O basquete, nem precisava dizer, nada perdeu com a aposentadoria precoce de um suplente crônico cujo galardão máximo foi ter sido convocado, com mais 50 e tantos, para uma seleção mineira juvenil, sendo podado na primeira passada de tesoura. Frustração, quase trauma para quem desde menino encasquetou brilhar no esporte de que o pai foi expoente, e não só em Minas Gerais, pois Hugo Werneck chegou a ser chamado para a seleção brasileira, distinção da qual declinou por já estar na batalha de seu consultório dentário. Modesto, não contava vantagem para a filharada, e nem seria preciso, pois a nós chegavam ecos da carreira memorável do Werneck, ala do Minas Tênis Clube.

Fernando Sabino foi um dos que me deram notícia dos feitos de meu pai nas quadras, nas quais, aliás, tinha como técnico um irmão dele, Gerson Sabino. Nadador no mesmo clube, o escritor me falou de “werneckadas” – e confirmou um episódio de que eu soubera por outras pessoas. Numa partida decisiva, o Minas vencia por 1 ponto quando o América, seu maior rival, virou o jogo. Faltando 10 segundos para o encerramento, a torcida americana festejava, e eis que o Werneck revirou o placar com um arremesso praticamente de uma cesta a outra.

Muito antes de ouvir a palavra, “werneckada” era tudo que eu ambicionava numa quadra, na óbvia e ainda inconsciente tentativa de me fazer admirado por quem tanto admirava. Tentativa patética, pois com 1,73 metro me faltava estatura até física para ombrear com um cestinha de 1,82. Também literalmente não estava à altura.

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Cheguei a defender, cá de baixo, a ideia de uma divisão do basquete em categorias por tamanho. Não me faltou o apoio de João Etienne Filho, jornalista, escritor, professor de História e juiz de basquete, que, por sinal, foi por um tempo anjo protetor do grupo adolescente de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende e Hélio Pellegrino. Etienne, que media 1,59, considerou justíssima a reivindicação. Não tendo sido atendido, entreguei os pontos no sábado que a tal foto cristalizou. Como se dissesse: se no basquete não deu, quem sabe no ofício em que, neste mesmo dia, estou fazendo minha estreia tipográfica?

Volto à imagem e constato, sem ressentimento, que ninguém ali veio a brilhar no esporte, salvo meu vizinho de foto Marcelo Reis, notável também no vôlei e no futebol de salão (ainda não se dizia futsal). Jaime Prado Gouvêa tornou-se um dos melhores ficcionistas de sua geração, objeto da minha inveja benigna por ser autor de obra tão curta quanto sólida, o romance O Altar das Montanhas de Minas e os contos de Fichas de Vitrola. Quanto a mim, bem, creio que posso com algum favor ser visto como um escritor cuja estatura empacou em 1,73 metro, hoje um pouco menos.

Fazer o quê? Aqui estou eu nesta vida, neste último parágrafo, pelejando para encaçapar mais uma crônica. Embaixo da tabela, livre de marcação, vejo a bola hesitar, e torço para que ela se deixe tragar pela goela da cesta, no que para mim seria, muito além de 2 pontinhos, uma das miúdas werneckadas de que, às vezes, sou capaz.

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