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Retratos e relatos do cotidiano

Quem de nós é adulto?

Pratos, remédio, contas, doutorado, malas... Ainda sou muito menina pra tudo isso

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Por Ruth Manus
Atualização:

Segunda-feira, Lisboa, início de verão. Os 34 graus pareciam subir do concreto em direção ao céu. Saí do escritório e caminhava de volta para minha casa nova, uma semana depois da mudança. Avistei a dona Rosa, vizinha do primeiro andar, tão graciosa quanto senil, debruçada na janela do meu novo prédio, construído em meados de 1890. Aproximei-me, eu, na calçada, de vestido florido e sapatilhas, ela debruçada na janela, como num quadro antigo. 

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Olhei para cima, sorri, cumprimentei-a. Ela disse que há tanto tempo não me via. Na verdade, nos vimos quatro dias antes. Me perguntei mentalmente se ela estava confusa ou se os dias na velhice são de fato tão mais longos do que aos 29 anos. De toda forma, eu disse que tinha viajado, o que não era mentira - embora tenham sido só três dias - e resolvi a situação.

Eu segui o assunto falando mal do calor, o que era injusto e falso, uma vez que eu adoro o verão, mas era tão evidente que a dona Rosa não se sentia bem com aquela temperatura, que posicionar-me do mesmo lado que ela foi inevitável. Ela sorria muito enquanto me olhava de cima, com seus cabelos clarinhos e óculos gastos. De repente, suspirou e disse: “Mas és tão menina! És tão miúda para ter uma casa, um marido, criança e tudo mais!”. Eu alarguei meu sorriso de quem sempre ouve que parece ser mais velha do que realmente é e agradeci, dizendo que era gentileza dela.

Subi meus 3 andares de escada e cheguei em casa. Mal abri a porta e os pedreiros me narraram uma fuga de gás. Seria preciso quebrar a parede de novo, chamar a inspeção e fechar o gás do prédio todo. Custaria a bagatela de 700 euros. Não tive nem forças para debater. Meu marido chegou, saímos correndo na sequência para ver os móveis faltantes. A criança está sem cama, os copos estão em caixas, os casacos estão em malas. Mais dinheiro. Falei com a minha mãe e soube da doença grave de uma pessoa querida. Chega, chega de segunda-feira.

Deitei, dormi. Tive dois sonhos. Primeiro sonhei que era dona de um hotel e tinha que reformar 6 andares, depois, um pesadelo terrível no qual eu abria a caixa onde estavam meus livros de poesia e todos eles tinham sido substituídos por livros de negócio do Filipe, com títulos como Patrão Inteligente, Empregados Satisfeitos. Acordei assustada com a campainha. Era o Seu Zé, o pedreiro de Cabo Verde, dizendo que precisava ver o olho de boi. Não faço a menor ideia do que é o olho de boi e já não ligo que o Seu Zé me veja de pijama. Abri a porta, disse para ele entrar, perguntei se ele queria leite com chocolate, já que não tomo café e nem sei fazer café, para o espanto de todos. Seu Zé não queria leite com chocolate, mas queria quebrar a parede às 8 da manhã. 

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Sentei no sofá, abri o e-mail. Tinha coisa do contador, do chefe, do sócio, do financeiro do jornal brasileiro, do diretor do jornal português, da editora, da outra editora, da minha orientanda. Não tem água quente em casa. Não vou lavar o cabelo. O cabelo está muito ruim. Posso lavar no cabeleireiro. Não posso. Não vou gastar dinheiro com uma bobagem dessas. Preciso ver o seguro da casa. Prometi pras velhinhas do prédio que também veria o delas. Preciso pagar o aluguel, a fatura do cartão de crédito, o empreiteiro e a mensalidade do doutorado. Ai Jesus, o doutorado. Não li nada, absolutamente nada para o doutorado nas últimas duas semanas. Mas eu estava de mudança. Mas o prazo está correndo. Não tem nada pra almoçar. Não sei onde estão os pratos. Nem meu remédio da tireoide. Preciso regar as plantas. O regador está encaixotado. Pois é, dona Rosa, os 90 anos trazem mesmo muita sabedoria. Acabo de me dar conta de que a senhora tem toda razão. Eu ainda sou muito menina pra isso. Acho que, no fundo, todos nós ainda somos muito meninos pra tudo isso.

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