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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Quatro J*rg* L**is B*rg*s

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Atualização:

Tudo bem, nossos biógrafos venceram, mas há outras questões para além do recém-lavrado armistício entre o direito à privacidade e a liberdade de expressão. A questão dos direitos autorais e dos limites da propriedade intelectual, por exemplo. Sobre isso os tribunais ainda irão gastar muita saliva. Das inúmeras coisas que a internet revolucionou poucas resultaram tão controversas quanto o conceito de apropriação autoral abonada por remakes, remixes e correlatas formas de vampirização criativa. O que em tempos analógicos já despertava polêmicas (a ideia de que, no fundo, nada é original, tudo é plágio), na era do “creative commons content”, do rachuncho conteudístico, perdeu a pecha delinquente, virou furto lícito, quando não um gesto de reverência ao autor afanado. Mas vá explicar isso aos herdeiros e guardiões das obras reverenciadas. Antigamente, Gôngora podia (re)escrever a fábula de Polifemo e Galateia sem ser acusado de plagiar ou desrespeitar Ovídio. Ao adquirir as obras do dramaturgo e poeta espanhol Lope de Vega, seus leitores podiam modificar-lhe os versos a seu bel prazer, lembrou-me há dias o crítico e escritor argentino Cristian Vázquez. Mas vá lembrar isso a María Kodama, viúva e herdeira universal de Jorge Luis Borges. Borges, presumido inventor espiritual do Google (quem conhece o conto A Biblioteca de Babel dispensa explicações), talvez se sentisse lisonjeado por ser um dos autores mais imitados, copiados, remixados e promovidos na grande infovia - e mesmo fora dela -, mas sua Yoko Ono não embarca nessa canoa. Guardiã do legado literário do marido, defende-o com implacável zelo e uma brigada de diligentes advogados. Evita a palavra plágio; seu argumento é a defesa da “integridade da obra” e do “respeito ao escritor”, segundo ela, constantemente ameaçados por “oportunistas” travestidos de admiradores e discípulos.  Meses atrás, Kodama processou o site de compartilhamento de conteúdo Taringa! por disponibilizar na rede vários textos integrais do escritor. No início de maio, a Justiça inocentou o site da acusação de “esbulhar direitos de propriedade intelectual”. Bastou-lhe remover com presteza o conteúdo contestado. Não sei se Kodama queria ver sangue, mas a simples remoção dos textos parece tê-la deixado satisfeita. Com obras impressas, a encrenca se complica e o deplorável confisco se impõe. O último “desrespeito” a Borges que a viúva tirou de circulação foi um experimento intertextual com o conto O Fazedor, levado a cabo pelo espanhol Agustín Fernández Mallo e intitulado El Hacedor (de Borges) Remake. Apesar das pressões de escritores, acadêmicos e leitores, a Alfaguara foi obrigada a retirar todos os exemplares do mercado em outubro de 2011. Nem me deu tempo de salvar o meu na Casa del Libro.  Dois anos antes da refeitura de O Fazedor, o argentino Pablo Katchadjian reescrevera O Aleph. Com quase o dobro das palavras do original, daí o título El Aleph Engordado, era outro exercício experimental, originalmente lançado por uma pequena editora, com uma tiragem de 200 exemplares. Em 2011, posto em evidência pela Alfaguara, Katchadjian conheceu a férula legal da viúva. Há 53 dias, acusado de “defraudación de la propriedad intelectual” da mais consagrada narrativa de Borges, foi condenado a desembolsar 80 mil pesos argentinos e ver seu livro condenado a vendas clandestinas. O Aleph, escrito em 1949 e retraduzido no final da década passada por Davi Arrigucci Jr. para a Cia. das Letras, já havia sido recriado em 1982 por Rodolfo Fogwill, mítico escritor argentino obcecado por sexo, drogas e política, morto cinco anos atrás. Em vez de engordar o relato original com carboidratos lexicais, Fogwill optou por brincar, já a partir do título (Help a Él), com paronomásias e ousadias afins. Help à Él (Ajudem-no, em espanglês) é um anagrama de El Aleph. Novela curta, assaz estranha, antiborgesiana no seu envolvimento com psicotrópicos, sexo, violência social e militarizada, é quase uma viagem lisérgica pela ditadura militar argentina e a paixão delirante de um homem por uma mulher.  Sua abertura segue a do conto original, ou seja, decorre numa candente manhã de fevereiro, quando Beatriz Viterbo morreu, “depois de uma imperiosa agonia que em nenhum instante se rebaixou ao sentimentalismo ou ao medo”. A defunta agora se chama Vera Ortiz Beti, anagrama de Beatriz Viterbo; e outras pequenas alterações vão se avolumando. O narrador não mais contempla os porta-cartazes da praça Constitución, mas os da praça San Martín.  Por algum insondável mistério, o paródico romance de Fogwill não só escapou das garras da viúva como foi reeditado pela Editorial Periférica. Custa R$ 63,90 na livraria Cultura, mas só por encomenda.  Outra paródia que logrou burlar o radar de Kodama foi escrita por Rhys Hughes, galês dado a bricolagens com autores de sua preferência. Já prestou dez metatributos a Italo Calvino; de Borges refez a História Universal da Infâmia. O próprio autor considera A New History of Infamy um livro obscuro, razão pela qual Fogwill duvida que a Kodama dele tivesse tomado conhecimento. De todo modo, continua à venda, em inglês e espanhol, a R$ 104,10 (na Cultura) e US$ 25 (na Amazon).  Seguindo o mestre, Hughes montou minibiografias de sete personagens históricos, valendo-se de dados reais e delírios de sua imaginação, arrematadas por uma seleta de textos curtos, igualmente rotulada de Etcétera. Aos dois prólogos que a História de Borges possui desde a reedição de 1954, Hughes contrapôs dois prefácios, um para a “edição inédita” e outro para a “edição imaginária”. No primeiro esclarece que seus textos são “insolentes no desejo de imitar os originais, que, por sua parte, são audaciosa e encantadoramente irresponsáveis”. Confere. Na History do galês, “o impostor inverossímil Tom Castro” cede lugar ao “impostor honrado Denis Zachaire” e o “provedor de iniquidades Monk Eastman” abre espaço para o “provedor de calamidades Basil Zaharoff”. Zachaire foi como ficou conhecido um alquimista francês do século 16 que dedicou a vida à inglória busca da “pedra filosofal”. Zaharoff é mesmo o legendário negociante de armas grego, que morreu pouco antes da Segunda Guerra Mundial, depois de ter-se servido bem da primeira.  Levando a paródia às últimas consequências, Hughes inventou uma confissão de encantamento de Borges por sua empreitada e estampou na contracapa esta falsa, mas genuinamente borgesiana, apreciação: “Na fecunda tradição de Herbert Quain e Pierre Menard (dois autores inventados por Borges), o galês Hughes se propôs a escrever A História Universal da Infâmia. O resultado é uma obra nitidamente original.  Assinado J*rg* L**s B*rg*s”.

Opinião por Sérgio Augusto
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