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Quase Natal, quase crônica

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Por HUMBERTO WERNECK
Atualização:

Se você esperava de mim uma crônica de Natal, pode ir tirando a rena da neve. Não que eu seja indiferente à ginga do jingobel ou surdo ao bimbalhar dos sinos. É pura falta de embocadura para qualquer tipo de prosa sazonal, seja ela natalina ou carnavalesca. Quem me lê já sabe que é só isto o meu baião. O que pingo aqui aos domingos pode não valer grande coisa, mas vale para as 52 semanas do ano. Depois, tenho escassa paciência para o frenesi (eu ia acabar usando esta palavra...) natalino, que às vezes naftalino mereceria ser chamado. Experimente aventurar-se num shopping a qualquer momento, ou encarar um cinema noturno na Paulista, como fiz no sábado passado. Já dizia Paulo Mendes Campos que as iniciais de Papai Noel, não por acaso, são as mesmas de Política & Negócios. Talvez seja por isso que o grande cronista e poeta, tendo ciscado entre os mais diversos temas, nunca se animou a escrever sobre as assim chamadas boas festas.Era o que eu achava até topar, dias atrás, com uma crônica do mesmo Paulo que ainda não está em livro, escrita nos anos 60 para as leitoras da Claudia. Tem a forma de uma carta endereçada ao editor da revista, que num incontornável trocadilho vinha a ser o Luís Carta. Luís lhe pedira uma crônica de Natal, e Paulo começa por se desculpar, alegando nunca ter sido capaz de produzir uma linha sobre o assunto: "Repórteres de segundo caderno todos os anos me telefonam para perguntar qual foi o meu Natal mais feliz ou mais inesquecível. Sento-me diante da máquina, esforço-me ao máximo para ter um pensamento ou uma lembrança: nada."Em seguida, porém, a memória do cronista regurgita "um episódio miúdo e distante", do tempo em que ele, aos 22 anos, editava o ótimo suplemento dominical da finada Folha de Minas, em Belo Horizonte. A edição de 24 de dezembro exigia um conto de temática ajustada à data, mas qual? Todos os que lhe ocorriam eram por demais manjados. Com o bafo de Papai Noel no cangote, o jovem editor, lá pelas tantas, não viu outra saída senão perpetrar ele próprio uns palmos de prosa natalina. O cronista não dá maiores detalhes, mas deixa pistas que, com a decisiva ajuda de minha irmã Ana Maria, diligente pesquisadora, permitiram desencavar as velhas páginas onde saiu Uma História Quase de Natal. No mesmo número, aliás, o suplemento mineiro trouxe outro conto, Eu e Jimmy, de uma jovem escritora, Clarice Lispector, que um ano antes tinha estreado em livro com o romance Perto do Coração Selvagem. Ao contrário do que diz na crônica o envergonhado contista, aos leitores da Folha de Minas foi oferecido bem mais do que "a historinha boba duma moça que tinha brigado com o namorado na véspera de Natal". Ainda assim, Paulo Mendes Campos preferiu apresentá-la como sendo de autoria de Lourdes Antonina de Assis, pseudônimo que em parte homenageava "o mestre Machado".De cara, um embaraço: como, sem despertar ciúmes, explicar à namorada quem era a tal de Lourdes, saída do nada? Para quem pretendia não fazer marola, a coisa se complicou ainda mais, pois Uma História Quase de Natal, na qual Julieta transita dos braços de Roberto para os de João, foi escolhido o melhor conto publicado em Minas Gerais naquele ano de 1944. Essa o Paulo não esperava - ainda mais que ele era um dos três membros da comissão julgadora. A iniciativa de premiar "a escritora jovem" partiu do veterano Godofredo Rangel e teve o apoio entusiástico de outro jurado, o poeta Hélio Pellegrino. Não se sabe se Paulo, em nome de uma desejável unanimidade, terá sido levado a votar em si mesmo. Diante do fato consumado, ele tratou de convencer a amiga Esperança a se passar por Lourdes Antonina de Assis - e acompanhou-a na cerimônia em que um livreiro fez a entrega do prêmio, que consistia em livros. "O pior", lembra o cronista, "foi que ela não respondeu a uma só das perguntas que lhe fazia o livreiro, acometida o tempo todo dum acesso de riso".E não é que, graças ao Paulo Mendes Campos e à Lourdes Antonina de Assis, eu acabei servindo a você uma quase crônica de Natal?

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