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Quase 2 milhões de pessoas no Facebook estão fingindo ser formigas

Embora possa parecer apenas mais uma esquisitice da internet, o grupo talvez esteja de fato atendendo a algumas necessidades humanas básicas – especialmente neste momento em que as pessoas estão isoladas por causa da pandemia

Por Travis M. Andrews
Atualização:

Quarta-feira chegou sem alarde, mas logo se revelou que seria um dia importante para a colônia de formigas.

Uma família humana havia estendido a toalha, cobrindo-a com sanduíches, batatas fritas, pretzels de chocolate e uma refrescante sobremesa de frutas. Uma das formigas postou a foto do piquenique no Facebook com a legenda “Humanos fazendo piquenique, o que a gente faz?”. Pouco depois, mais de 2.700 colegas de colônia postaram ordens como “roubar”, “invadir”, “trazer para a rainha”. Ao que parece, Sua Majestade desfrutou de um belo banquete naquela noite.

'As pesquisas mostram que procuramos mais os grupos quando somos lembrados da incerteza e da morte - e, nestes tempos, somos lembrados da morte todos os dias', diz a psicóloga Erin Dupuis. Foto: @amit_8/ Unsplash

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Bem-vindo ao grupo privado de Facebook apropriadamente intitulado “Um grupo em que todos fingimos ser formigas numa colônia de formigas”, no qual quase 2 milhões de membros (humanos) fazem exatamente isso.

O conceito é tão simples quanto as regras. “Neste grupo, somos formigas”, diz a descrição. “Adoramos A Rainha e fazemos coisas de formiga. Bem-vindo à colônia”. Desde que você seja gentil, evite política, não faça bullying nem discurso de ódio, lembre-se de que seu nome é Formiga-Seu-Nome (este repórter, por exemplo, é Formiga-Travis) e sempre escreva “A Rainha” em letra maiúscula, “você será afetuosamente aceito como membro” – o que basicamente significa que, quando outra “formiga” postar uma foto de comida ou de inseto agressor, você poderá responder nos comentários com o comando apropriado, seja “levar para o formigueiro”, “comer” ou “dar uma mordida”.

Embora possa parecer apenas mais uma esquisitice da internet, o grupo talvez esteja de fato atendendo a algumas necessidades humanas básicas – especialmente neste momento em que as pessoas estão isoladas por causa da pandemia.

“Somos animais sociais. Precisamos pertencer a um grupo e, nesse caso, o grupo não tem muita seriedade”, disse Erin Dupuis, professora de psicologia da Universidade Loyola, em Nova Orleans, que estudou os benefícios sociais de jogar jogos de RPG online com inúmeros jogadores. Ela mencionou a teoria da identidade social, que, resumida ao seu nível mais básico, sugere que “quando pertencemos a grupos, nos sentimos melhor” – não importa que tipo de grupo seja.

Tyrese Childs certamente não tinha nenhuma teoria psicológica em mente quando começou o grupo em junho de 2019, em casa de férias da faculdade. Ele já tinha visto um grupo no qual millennials e gente da geração Z fingiam ser baby-boomers, o que logo o direcionou para um outro grupo, onde as pessoas brincavam de ser vacas e agricultores.

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“Os grupos estavam super lotados, então pensei em fazer o meu para meus amigos e para mim”, disse Childs. Ao refletir sobre a ideia, ele viu um formigueiro no chão e lhe bateu a inspiração. No começo, as únicas formigas eram Childs e algumas dezenas de amigos “que pensavam: ‘Este negócio é meio estúpido, mas é bem engraçado’”.

Depois do verão, ele “meio que se esqueceu” do grupo, até que um belo dia voltou a se conectar e descobriu que tinha 10 mil membros – muitos dos quais estavam alvoroçados porque a Formiga-Kevin (verdadeira identidade desconhecida) estava tentando dar um golpe. E todo mundo sabe que isto não é coisa que se faça. Childs decidiu que estava na hora de voltar para a colônia.

Depois vieram dois choques: um tweet sobre o grupo que viralizou e uma pandemia. De repente, centenas de milhares de pessoas estavam sacrificando suas vidas à Rainha.

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Durante a quarentena, “as pessoas ficaram muito cansadas de percorrer as mesmas redes sociais todos os dias. Começaram a procurar alguma coisa diferente e acabaram nos encontrando”, disse Childs. “Acho que as pessoas realmente estão procurando alguma forma de escapismo agora. Tentamos assistir à Netflix para distrair a cabeça do que está acontecendo na mídia e no mundo (...). No grupo, você não precisa ser você mesmo. Você não precisa se preocupar com os problemas da sua vida. Você só larga tudo e vira formiga por uns vinte minutos. Aí você ganha um pouco de serotonina e volta para o jogo”.

“Também é uma comunidade saudável”, uma verdadeira anomalia nas redes sociais, sugeriu ele. Fora todo o episódio da Formiga-Kevin, “você não precisa se preocupar com dramas de formigas. Não tem nada disso”.

'Você não precisa se preocupar com os problemas da sua vida. Você só larga tudo e vira formiga por uns vinte minutos', explica o fundador do grupo, Tyrese Childs. Foto: CELSO JUNIOR/ ESTADÃO

Dupuis disse que não é de surpreender que o grupo tenha explodido durante os primeiros meses da pandemia. É um lugar onde as regras não mudam, as ações não mudam e todos “trabalham” juntos. “As pesquisas mostram que procuramos mais os grupos quando somos lembrados da incerteza e da morte – e, nestes tempos, somos lembrados da morte todos os dias”, disse ela, acrescentando que “não fazemos isto num nível consciente”.

O grupo agora chegou ao ponto em que Michael Melcher e os mais de 100 administradores e moderadores vasculham milhares de posts, aprovando aqueles que se encaixam nas regras. Em geral, eles só precisam eliminar coisas humanas.

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“Este grupo é destinado a formigas”, disse Melcher. “Estamos tentando manter a pureza do grupo”.

Enquanto algumas formigas podem estar procurando distração, outras postam pesquisas sobre o comportamento das formigas de verdade. Você sabia, por exemplo, que uma grande porcentagem da colônia não trabalha muito – provavelmente servindo apenas como reserva em caso de perda de trabalhadores altamente produtivos?

“Muitas vezes fico tentando chamar a atenção das pessoas e explicar por que vale a pena falar sobre minha pesquisa”, disse a Formiga-Katie, também conhecida como Katie Baudier, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade Estadual do Arizona que estuda a defesa coletiva em insetos sociais. “É um lugar incrível não apenas para mim, mas para muitos biólogos de insetos sociais”.

“As pessoas carregam muitos conceitos errôneos, com base em poucas informações ou suposições sobre os insetos sociais em geral”, disse Baudier. “E vale a pena conversar sobre isso. Diz muito sobre a nossa sociedade”.

Por exemplo: muitos membros do grupo se referem às várias formigas com pronomes masculinos, mas Baudier ressalta que “as formigas na verdade têm tudo a ver com as mulheres”. As formigas operárias são do sexo feminino; portanto, quando os membros do grupo se referem a elas como homens, acabam “reforçando essa ideia de que são os homens que trabalham mais”, disse ela. “Sinto que isso decorre de alguma bagagem que trazemos da nossa própria sociedade cultural humana dos Estados Unidos”.

Alguns membros responderam a esse equívoco com pequenas histórias em quadrinhos nas quais as formigas operárias tinham cílios longos e eram chamadas de “ela”. Pouco depois, os membros da colônia já estavam usando os pronomes certos. O grupo, disse Baudier, oferece “um exercício interessante sobre como podemos apresentar nossa ciência de um jeito mais divertido ou acessível”.

Childs está impressionado com a maneira como sua comunidade cresceu – e continua se autorregulando. Formigas fazem posts. Melcher e os outros moderadores os aprovam. E os humanos que fazem piqueniques continuam correndo de medo.

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“É espantoso que uma coisa que eu trouxe para o mundo como uma brincadeira possa se tornar algo tão significativo para tantas pessoas”, disse Childs.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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