Ouvi a música pelo piano de mamãe, quando era um menino: era o netinho que levava o avô pela mão até o seu bloco de carnaval. Hoje, sendo um avô feliz e orgulhoso de cinco lindas moças e três belos rapazes, tenho nada mais nada menos do que oito mãos dispostas a amorosamente me conduzirem ao meu bloco que, passa todo ano pela minha calçada.
Leitor querido: se você tiver alguma recordação desse música, ouça-a. Se você não souber manipular algum aparelho eletrônico, seu netinho lhe ajuda. E ouvindo a simplicidade dessa tocante canção, você vai ler essa crônica como eu a escrevo: com os olhos molhados dos antigos carnavais.
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Era um menino quando meu coração gravou essa música. Hoje, nesse carnaval que acabou de passar pela minha calçada, eu, velhinho, apenas vi o bloco passar. Algo me diz que cada um de nós pertence a muitos blocos. Uns nos são impostos outros, como os de carnaval, são escolhidos. Dir-se-ia que os impostos são opressivos e obrigatórios – como a casa, os irmãos, a escola e até mesmo o país, a etnia e o gênero; ao passo que os escolhidos, como o bloco de carnaval figurado nesta música, são marcados por liberdade. Há uma verdade nisso, mas há também a ilusão que o carnaval brasileiro representa muito bem. É que o escolhido e o obrigatório também se confundem, pois muito do que é “escolhido” é determinado por um “obrigatório” vivido com mais ou menos intensidade. Há quem transforme escolha em obrigação e quem faça o justo oposto, diz o meu lado cinzento como essa quarta-feira, outrora santificada – hoje parte de um longo e fantasioso feriado.
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O tempo do carnaval era obrigatório. A despeito de todas as mudanças, ele continua sendo a pausa que dá sentido e razão ao tempo como uma majestade humana. Este imperador sem rivais que dizem que passa quando, de fato, quem passa somos nós.
Uma lenda escandinava, traduzida à luz da análise pelo sábio das línguas e costumes indo-europeus Georges Dumézil, conta a história de um camponês que, sem querer, libertou o Diabo de uma caixote que ele transportava para um padre na sua carroça. Livre e solto o Diabo – que está sempre fazendo alguma coisa – começou a surrar o seu involuntário libertador perguntando ansiosamente: o que devo fazer? O camponês mandou que ele construísse uma ponte de pedra e em instantes ela ficou pronta. E logo o Diabo perguntou novamente: o que devo fazer? O camponês mandou que o Diabo juntasse todos os excrementos de cavalo do reino da Dinamarca o e num instante a tarefa estava cumprida. Aterrorizado porque ia apanhar novamente, o camponês teve a feliz ideia de mandar que o Diabo recuperasse o tempo. Sabendo que o tempo era precioso, o Diabo saiu em sua busca, mas não conseguia alcançá-lo. Trouxe dele pedaços, mas não o tempo inteiro como ordenara o camponês. Não tendo observado a tarefa, o Diabo voltou para a caixa.
O tempo como potência impossível de ser apanhada foi brilhantemente descrito por Frei Antonio das Chagas num poema escrito nos mil seiscentos e tanto:
Deus pede estrita conta de meu tempo.
E eu vou do meu tempo,
dar-lhe conta.
Mas como dar, sem tempo,
tanta conta
Eu, que gastei, sem conta,
tanto tempo?
Para dar minha conta feita a tempo,
O tempo me foi dado e não fiz
conta,
Não quis, sobrando tempo,
fazer conta,
Hoje, quero acertar conta,
e não há tempo.
Oh, vós, que tendes tempo
sem ter conta,
Não gasteis vosso tempo
em passatempo.
Cuidai, enquanto é tempo,
em vossa conta!
Pois, aqueles que, sem conta,
gastam tempo,
Quando o tempo chegar de
prestar conta
Chorarão, como eu, o não ter
tempo...
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Afinal somos nós que brincamos o carnaval ou é o carnaval que brinca conosco o tempo todo?