Qorpo Santo, o teatro surreal do século 19

Sai o teatro completo de Qorpo Santo, a obra do gaúcho José Joaquim de Campos Leão, escritor do século 19 que publicou às próprias custas e chocou a então provinciana Porto Alegre. Dia 9 estréia uma peça de sua autoria

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Por Agencia Estado
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A sociedade do Rio de Janeiro deliciava-se com as inocentes comédias de Martins Pena, Joaquim Manuel de Macedo e Artur Azevedo, enquanto na Europa esgotavam-se os ingressos da peça A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho - era o século 19 e dramaturgia dominante, bem-comportada, previa constantemente a vitória da moral burguesa no final. Poucos suspeitavam que, em Porto Alegre, então uma cidade provinciana, um pacato professor, José Joaquim de Campos Leão, escrevia febrilmente um conjunto de textos teatrais que, se escandalizava pelas tramas que envolviam adultério, violência e homossexualidade, também apontava traços do que, anos depois, seria conhecido como surrealismo. Em 1866, quando escreveu sua dramaturgia em apenas cinco meses (entre janeiro e maio), Campos Leão já apresentava os distúrbios mentais que quase o levaram ao hospício. Tais indícios de loucura, porém, provocaram-lhe uma atividade febril da imaginação a ponto de, já sob a alcunha de Qorpo Santo, produzir 17 peças. São esses textos que a editora Iluminuras reuniu e publicou em Teatro Completo (336 páginas, R$ 39), recentemente lançado, com prefácio crítico de Eudynir Fraga, estudioso recentemente falecido. Trata-se da possibilidade de se (re)descobrir uma forma de carpintaria teatral distinta, que desprezava as convenções e privilegiava a irreverência e arbitrariedade. Se os textos teatrais do século 19 exigiam ação contínua e veracidade psicológica, as 17 comédias de Qorpo Santo apresentavam personagens que mudam de nome ao longo das cenas, não respondem uns aos outros e produzem frases descontínuas sem que se exiba, ao redor deles, os objetos mentais ou físicos de onde decorrem as analogias. "Se o autor parece ansiar por um mundo em que prevaleçam a ordem e a obediência aos preceitos religiosos e legais, logo se insinua a malícia e o deboche, colocando em ridículo tais objetivos e mostrando a precariedade de nossos juízos", escreve Eudinyr Fraga, um dos principais pesquisadores da obra de Qorpo Santo. Em seu prefácio intitulado Um Corpo Que se Queria Santo, Fraga recupera a história de José Joaquim Campos Leão, professor e vereador que nasceu em 1829, em Porto Alegre, e manteve uma vida pacata até atingir os 34 anos, quando alterações no comportamento levaram-no a ser acusado na justiça de alienação. Enviado ao Rio de Janeiro para exames, foi considerado um homem normal, apenas com uma "exaltação cerebral", que o tornava um escritor compulsivo. A partir de 1863, Campos Leão acreditou estar imbuído de uma missão divina, o que o convenceu a escolher o apelido ao mesmo tempo em que, ao escrever, adotou uma reforma ortográfica própria, em que eliminava letras que considerava inúteis (como ph, y, w e c cedilhado) além de promover trocas (o q no lugar do x, como em seqso). Três anos depois, produziu febrilmente sua obra, que só foi publicada em 1877, quando ele mesmo abriu uma tipografia e publicou a Ensiqlopéida, obra em nove volumes dos quais dois não se tem notícia. Foi daquela tipografia que saíram os exemplares de livros logo destinados à destruição ou ao esquecimento, com exceção de algumas raridades que foram parar nas mãos de um colecionador particular, possibilitando o seu renascimento artístico já na década de 60 do século 20, graças à incansável pesquisa de Guilhermino César. Fraga observa que os personagens criados por Qorpo Santo são indivíduos sempre à beira de um colapso existencial, "tentando se afirmar no território movediço de uma organização social incompreensível e injusta". Entre desejos obscuros e frustrações sexuais, eles afirmam-se, negam-se e tentam se reconstituir em um processo que resulta totalmente teatral. Grotesco - Para traduzir esses sentimentos, Qorpo Santo utilizou todos os recursos do grotesco e construiu cenas marcadas por agressões físicas, algo inimaginável na época. As transgressões são múltiplas: em "Eu Sou Vida, Eu não Sou Morte", Japegão, o marido, dá um coice na cara de Lindo, o amante de sua mulher; no final de Um Credor da Fazenda Nacional, toca-se fogo na repartição pública enquanto os funcionários se atropelam; em Um Assovio, Fernando Noronha bate no traseiro de Gabriel Galdino, que está grávido de seis meses; em A Separação de Dois Esposos, a dupla homossexual Tamanduá e Tatu troca socos por não chegar a um acordo sobre a melhor forma de levar sua relação. A forma de construção da peça também não seguia a tradicional: os atos não são atos, as cenas não são cenas e o fim não é exatamente um ponto final da ação desencadeada, mas uma interrupção arbitrária do autor, que declara seu desinteresse pelo ato da escrita. Outro ponto revelador é a liberdade verbal dos personagens, que começam a discorrer sobre determinado assunto e aos poucos, sem maiores explicações, dele se afastam e se entregam a uma série de temas alternativos, perturbando a compreensão do público. Fraga observa que tal "fluxo da consciência", sob o nome "automatismo psíquico", é técnica preconizada por Breton em seu Manifesto Surrealista, de 1924. Assim, Qorpo Santo surge não só como um precursor do movimento como também demonstra que vivia sob o caso clínico de uma personalidade dividida. Ele morreu em 1883 desconhecido, mas deixou uma dramaturgia transgressora. Com epígrafe de sua obra, Fraga sugere uma fala do protagonista de As Relações Naturais: "É preciso dizer o contrário do que penso."

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