Pulsão de vida e de morte

Uma das obsessões da obra é lembrar que ao prazer de existir se une o olhar do fim

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Por Alcides Villaça
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Imenso vitral, foi a expressão de um surpreso Drummond, diante da aparição (o termo é esse) das memórias que o velho amigo mineiro Pedro Nava, quase septuagenário, começava a publicar em 1972. Estreando no gênero com Baú de Ossos, Nava revelava, com fôlego surpreendente e arrebatador, a arte de quem cultivara por muito tempo e muito fundo uma germinativa matéria de memória, para enfim convertê-la em grande literatura. Fortalecemos, na leitura, a convicção de que não existe memória estritamente individual: toda lembrança inclui uma perspectiva de valores socialmente compartilhados, toda singularidade pessoal se define em face de singularidades outras.No final da década de 70 passei a ler o memorialista, naquela altura já aclamado pelos primeiros quatro volumes da série (de longe, os melhores). Logo me vi rabiscando à margem, para marcar a força especial de trunfos narrativos, de descrições vibrantes, de súmulas reflexivas - ou mesmo de chistes impagáveis, acionados por um mestre do humor. Essa multiplicidade de interesses e pontos de sedução (articulados como "móbiles da memória" como propõe Davi Arrigucci no posfácio) faz das páginas de Nava uma das mais prazerosas experiências de leitura em língua portuguesa. A ambição é tão grande e a matéria é tão extensa que nem sempre tudo se alcança: confessa-o o próprio autor, quando admite que sua obra é o "puzzle de uma paisagem que é impossível completar". Nota-se mesmo, com alguma frequência, a busca indiscreta de efeitos literários, ao lado do brilho verdadeiro de tantas invenções e epifanias. Em Baú de Ossos afina-se já a base tonal que marcará o conjunto da obra, e que outra vez Drummond reconheceu tão bem: uma dolorida, desenganada mas ainda assim generosa experiência do humano. O interesse meticuloso do memorialista na recuperação e composição de tantos detalhes, pessoas e episódios traduz-se como um culto que é também ressentimento do passado. A presença fantasmagórica da Morte, as perdas dolorosas (a do pai, sobre todas), o convívio com a crueldade e a injustiça, os estigmas creditados à genealogia, a solidão irremissível fazem o fundo negativo da formação do menino e do adolescente, nas dobras severas de Minas (Juiz de Fora e Belo Horizonte) e depois no internato Pedro II, no Rio. Mas junto com isso há a enorme sensualidade do corpo e do espírito do autor/narrador, uma inclinação para apetites que vão da leitura dos clássicos aos engenhos da gastronomia (com direito, por exemplo, a uma inestimável receita de feijoada, tratada como peça sinfônica). Uma das obsessões dessas memórias está em lembrar que o prazer da vida não é alheio à libido da morte, junção freudiana nada estranha para o médico e para o memorialista, fascinado e atemorizado pelo sentimento do tempo que "tá passando... tá passando..." - como no refrão com que a mulata Rosa ia intrigando as histórias que contava às crianças.O narrador reitera ainda, aqui e ali, sua consciência dos processos convocados pela memória: retomar, cortar, esquecer, costurar... Sabe que há nas lembranças raízes subterrâneas que tecem sua própria lógica no subconsciente, cabendo a quem as revolva explorar os nexos e as analogias. Por isso, se há uma linearidade básica nas Memórias, há também excursos, avanços e recuos no tempo, que suspendem aqui e ali a linha reta para não comprometer a viva espiral ou as ramificações da matéria lembrada. No ano de 1973 surge Balão Cativo, no qual imperarão as primeiras lembranças do menino Nava, a partir da experiência fundamental da perda do pai, narrada na passagem magistral que fechara Baú de Ossos. Sendo agora o narrador também protagonista, o universo das pessoas concebidas como personagens move-se à sua volta: "O menino que ainda não sai de casa tem a impressão de que está no centro do mundo e que os outros vivem, como planetas, em torno de sua personalidade solar. Depois é que vê seu nada quando se compara às galáxias que vislumbra". Neste fragmento está o passo essencial das memórias desse período: o menino vive seus últimos dias de infância e dá adeus a ela no episódio em que acena para mãe, da janela do trem que o levará ao Rio, à casa do tio e intelectual Antonio Salles (com sua extraordinária biblioteca e as conversas em passeio por ruas e livrarias) e, sobretudo, à vida de rapazinho interno no histórico Colégio Pedro II (de que tratará magistralmente o volume seguinte, Chão de Ferro). Em Balão Cativo definem-se de vez linhas de força das Memórias, entre as quais destaco: o sentimento de predestinação sombria ("Vai, Pedro, toma tua carga nas costas e segue"); os estigmas da genealogia ("Não morri jamais de amor por minha avó. Mas sei quando ela coça dentro do meu corpo e quando nele pesa"); a reverência à sedução e aos rigores da cultura letrada; o embate entre a disciplina da vida escolar e a vocação anárquica do adolescente; e, no comando de tudo, o desafio de traduzir memória em literatura: "Só há dignidade na recriação. O resto é relatório". Colecionador obsessivo de "relatórios" (arquivos, cartas, documentos, anotações, testemunhos, conversas, impressões vivas, etc.), coube a Nava habilitar para o interesse coletivo toda a matéria que recolheu como forte impressão pessoal. Mas não é essa, em suma, a habilitação intentada por toda representação artística? Escritor exuberante, plurilíngue, senhor de um léxico portentoso, ágil narrador, meticuloso pintor de espaços e figuras, pensador que bebeu em múltiplas fontes, amigo tributário dos modernistas, médico realizado e implacável juiz de caracteres, Nava é autor e produto das memórias que escreveu: projetou-se e converteu-se em tudo o que recordou. Produziu também a própria morte, antecipando-se à personagem de seus pesadelos e datando com decisão o epílogo da trajetória. Que todo leitor, aliás, pode reiniciar, partindo da frase que abre as Memórias: "Eu sou um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais".

ALCIDES VILLAÇA É PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA DA USP

 

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