Psicanálise na pandemia

Agora a gente faz análise pelo celular. Olha aonde chegamos...

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Por Milton Hatoum
Atualização:

“Contei um sonho no início da sessão”, disse minha amiga. “Oito minutos, com pausas longas. Depois fiquei uns 15 minutos calada. Você sabe, o silêncio na análise... Agora a gente faz análise pelo celular. Olha aonde chegamos...” Acabou a sessão? “Não, foi só o começo. Mas aí reapareceu a figura apavorante e feroz.”  Qual? “Um rinoceronte.” No celular?  “Na análise pelo celular. Na conversa... Porque minha analista falou, nem ela suportava mais tanto silêncio. Nesses sete anos, ela só dizia algumas palavras, às vezes, uma frase. Você sabe, uma frase que nos faz pensar o resto do dia e fica martelando durante a noite. Ela pediu que eu voltasse ao sonho. Tentei relembrar as imagens e palavras e quem surgiu primeiro: as pessoas, a cidade, o fogo ou o monstro. Concluí, sem muita certeza, que todos surgiram juntos e ao mesmo tempo. E todos se transformaram num monstro ‘rinocerôntico’. Um mar de monstros, como numa festa macabra ou num ritual de destruição. Não tinha filhotes de rinoceronte, todos eram grandes, com um ou dois cornos, só que os cornos eram armas de fogo... E eu me vi naquele fogo cruzado, entre hordas inimigas, em combate renhido, numa batalha sem fim. Quer dizer, o fim da batalha foi o fim do sonho, e só uma pessoa resistiu à transformação e manteve sua condição de humano. Essa pessoa, essa pessoa...” Era você? “Não. Era ela, minha analista. E quando eu disse que ela era o único ser humano entre rinocerontes ferozes, vi no celular um riso disfarçado, ou ambíguo. Mas me enganei, o rosto dela estava sério. De repente escutei um sussurro: ‘Psicanálise não é salvação’. E ela continuava séria, de boca fechada. Eu mesma tinha dito a frase. Foi um sussurro que veio de dentro... Claro, não é salvação nem perdição. Ela sabia que eu era atriz e perguntou se eu conhecia alguma peça de Ionesco. Eu tinha lido O Rei Está Morrendo, mas a leitura que me marcou foi a da peça O Rinoceronte, em janeiro de 1976, quando um operário foi assassinado pela ditadura. Fui à missa em memória dele e, cinco dias depois, a polícia invadiu minha casa e me prendeu. Eu já tinha falado para minha analista sobre esse trauma e temia que ela perguntasse alguma coisa, mas ela não disse nada. Nós duas ficamos caladas, uma olhando para a outra. Que situação! Ela pensava e eu imaginava. Ou ela imaginava e eu pensava? Enquanto ela me olhava, eu me lembrava de frases da peça de Ionesco, como se estivesse ensaiando neste ano desgraçado, e não na desgraça de 1976... Uma das frases era: ‘Em qualquer lugar ou circunstância, vou lutar contra a ignorância’. Outra: ‘Sonhar de pé, deitado ou sentado, tanto faz’. Uma enxurrada de frases, como se eu fosse todas as personagens. O tempo passava, e do fundo da memória vieram imagens que eu queria apagar, extirpar, mas pareciam tão presentes, que acabaram ocupando uma imagem contundente, que eu não vou contar. Ia me despedir da sessão, quando escutei uma das verdades de um romance famoso: ‘A história é um pesadelo do qual tento despertar’.” Ela falou isso? “Alguém falou. Não sei se foi no sonho ou na sessão de análise, porque minha cabeça já estava embaralhada, tudo era inusitado, e a realidade era improvável.”  E depois? “Silêncio.”

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