Prometheus, fogo grego na dança dos orixás

Cia Balagan reproduz encantamento da mitologia

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Por Redação
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O espetáculo Prometheus - A Tragédia do Fogo reproduz com encantamento o caráter labiríntico da mitologia grega. Pede-se voo de imaginação no emaranhado de personagens e acontecimentos dessa religião politeísta da Grécia antiga (estamos voltando 3 mil anos no tempo). O texto resulta de citações esparsas e trechos de inúmeros autores desde o historiador Hesíodo ao trágico Ésquilo. No resumo e centro da ação está Prometeu um dos habitantes do Olimpo, a "morada dos deuses", organizada de forma hierárquica sob o comando Zeus. O Pai Eterno, maravilhoso e tirânico, atribui a Prometeu e ao seu irmão Epimeteu a tarefa de criarem o homem e os animais, mas, em seguida, é tomado de fúria quando Prometeu concede o uso do fogo, logo da vida, à Humanidade. Decide acorrentá-lo ao Cáucaso, a cordilheira entre o mar Negro e Cáspio, para uma águia monstruosa devorar-lhe o fígado por milênios sem conta. Há várias interpretações para a ocorrência e por elas passam antropologia, história da formação dos povos e das religiões, literatura e a psicanálise. Com tais variantes à disposição, a encenadora Maria Thais, o dramaturgo Leonardo Moreira e os intérpretes da Cia Teatro Balagan construíram um espetáculo brilhante de enredos multifacetados, contraditórios, lacunas, tramas paralelas e entrelaçadas. Fantasia com ritmos e musicalidade abstratos e um tênue fio condutor. Porque se for para estudar mitologia grega com erudição e racionalidade, há, entre outras fontes, a obra do brasileiro Junito Brandão ou os comentários precisos da História das Religiões, do italiano Maurílio Adriani. A proposta da Balagan é, porém, jogo dos búzios - você sabe o que é? - em que o cerebral e o emotivo se casam na morada dos orixás. Um ato de justiça cultural porque se as cosmogonias se assemelham, não há, porém, igualdade segundo o poder e a mentalidade de quem olha (político, militar, cultural). Em outras palavras: se mitologia grega branco-europeia é uma joia do Ocidente, o mesmíssimo universo, mas no contexto africano, pode ser rotulado de subcultura de negro "macumbeiro". Ou seja, Casa Grande e Senzala em escala universal. Prometheus termina lindamente com uma dança de candomblé. O espetáculo tem sido acompanhado de um ciclo de estudos sobre mitos, cultura grega e religiosidade, mas, estranhamente, não se previu uma palestra sobre as crenças afro-brasileiras com um especialista do nível do sociólogo Reginaldo Prandi, hoje um dos principais estudiosos do candomblé. Autor de Mitologia dos Orixás e Segredos Guardados - Orixás na Alma Brasileira (Cia. das Letras), Prandi é professor da Universidade de São Paulo como, antes, Roger Bastide, que escreveu As Religiões Africanas no Brasil.A criação do Balagan mostra um Olimpo agitado por paixões idênticas às dos humanos e, logo, o avesso do diáfano Céu do catolicismo; a culpa judaico-cristã não mora ali. A cena é tomada por seres coléricos envoltos em disputadas internas ou determinando castigos e vinganças. Zeus (Oxalá?), o pai de todos, envia aos homens a fascinante e temível Pandora (Iansã?), aquela que detém a caixa onde estão guardados todos os males. Pandora, como Eva bíblica, a serpente e o fruto do conhecimento, a perdição de Adão favorece extensa gama de visões e uma das mais plausíveis tem conotação sexual. A caixa seria o instrumento de sedução de Pandora, o que é dito aqui aos gritos e pelo nome vulgar do órgão sexual feminino. Não soa bem, é provocação rude, algo como "feminismo" deslocado. O mito nesse instante perde força em meio a tanta sofisticação artística. Felizmente, apenas um ruído passageiro numa celebração com trechos em grego, língua musical, e na qual os intérpretes demonstram preparo corporal e senso coreográfico e o palco - grande invenção cenográfica de Márcio Medina - pode ser dividido por cortinas (ou "caixas" de representação) que realçam detalhes do fluxo narrativo. A larga epopeia é, assim, pontuada por odes tensas ou sonhadoras. No elenco arrebatado desponta o talento, imponência e beleza de voz de Gisele Petty (Pandora). Com esse conjunto de acertos, Maria Thaís e a Cia Balagan enriquecem ainda mais a já vigorosa programação do Teatro da USP (Tusp) e fazem de Prometheus uma das belezas da temporada.

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