Projeto recupera obras raras do século 17

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Por Agencia Estado
Atualização:

Escorada num investimento de R$ 20 milhões e num audacioso projeto de restauro e revitalização, a Santa Casa de Misericórdia da Bahia - a primeira do País e a mais importante do Brasil colonial - renasce no fim do mês como mais um centro de atração cultural da capital baiana. Tem 456 anos de existência. O dia 22 é a data escolhida para a reabertura da Santa Casa e a inauguração do projeto Portal da Misericórdia, que inclui o prédio-sede da instituição, além de todo o casario circundante, rebatizado de Boulevard da Misericórdia. São seis casarões, que abrigam livraria, cafeteria, restaurantes, uma galeria fotográfica da Fundação Pierre Verger, o Instituto da Hospitalidade (de formação técnica de agentes de turismo) e os diversos atrativos artísticos do conjunto à disposição do visitante. Mas o maior desses atrativos são as pinturas recuperadas pelo restaurador argentino Domingo Telecchea, a partir de projeto do curador, artista plástico e museólogo Emanoel Araújo (ex-diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo). Além de dar nova vida às obras, pinturas, retratos, retábulos e mobiliário da Santa Casa, Telecchea revelou um conjunto de painéis dos séculos 17 e 18 que estavam encobertos por intervenções diversas e eram desconhecidos dos historiadores. São cenas sacras dos pintores José Joaquim da Rocha e João Álvares Correia, que estavam repintadas com outros temas ou refeitas por artistas de menor envergadura. "Escavadas", as pinturas revelaram personagens e cenas bíblicas diversas daquelas que eram conhecidas, além de assinaturas originais. São algumas das obras mais antigas da Bahia. Os casos mais gritantes de adulteração ocorreram com seis tábuas de João Álvares Correia, um excelente e pouco conhecido pintor baiano do século 17. Uma das tábuas, por exemplo, tinha antes do restauro uma cena que ilustrava um milagre de Cristo, a ressurreição da filha de Jairo. Foi feita já no início do século 20. Por baixo dessa pintura estava o verdadeiro trabalho de João Álvares Correia, na verdade uma coisa totalmente diversa. "O original é o tributo a César, uma pintura do tipo tenebrista, com claro escuro mais destacado, mais dramática", conta Telecchea. "Era um tipo de pintura mais comum naquele período, recomendada pelo Vaticano, pelo Concílio de Trento." Cristo - A investigação dos restauradores partiu dos próprios documentos encontrados na Santa Casa, mas também da observação de que havia muitas "composições impossíveis" nas tábuas. "Um dos artistas que repintou as tábuas criou uma falsa perspectiva para poder inserir a cena, mas pintou Cristo segurando a mão esquerda da mulher morta também com a mão esquerda, um deslize grosseiro", diz Emanoel Araújo, mentor do plano de restauro da Santa Casa. As pinturas das seis tábuas recuperadas de João Álvares Correia, segundo os restauradores, estão em situação melhor do que as repinturas subseqüentes. O motivo é que foram feitas em tábuas extremamente polidas, um trabalho muito minucioso que permitiu que a pintura se conservasse muito bem. Uma delas é datada de 1699. Já as telas de José Joaquim da Rocha (1737-1797), um dos mais influentes mestres pintores brasileiros, tinham sido repintadas canhestramente por outras pessoas, mas com os mesmos temas. "Só que a parte pictórica da repintura era muito pobre, completamente distinta do estilo do mestre, que era inconfundível", diz Domingo Telecchea. Emanoel Araújo participou ativamente do projeto de recuperação do conjunto até pouco tempo, mas afastou-se por problemas de saúde. Tornou-se consultor do próprio plano de recuperação, que incluiu a criação de um ateliê aberto de restauro, com ações voltadas para a comunidade. Ele foi o responsável pela ida de Telecchea a Salvador. Além disso, também orienta a abertura dos arquivos da Santa Casa para pesquisas e o público. "É um dos poucos arquivos do século 17 que mantém os registros de escravos, as narrativas e documentos que revelam a história da vida cultural da Bahia", diz Araújo. Primeira instituição filantrópica de Salvador, a Santa Casa de Misericórdia atuou a partir do século 16 na Bahia como uma espécie de ONG (organização não governamental) da vida social baiana. Educação - Na sua nova investida, a Santa Casa ganha o reforço do Instituto da Hospitalidade, criado por idéia de Sérgio Foguel, conselheiro da Odebrecht, para dar apoio educacional ao projeto, para "dar função ao corredor da Santa Casa", como definem seus gestores. A Rua da Misericórdia, onde fica a Santa Casa, está localizada na entrada do Pelourinho. É uma rua de 120 metros entre a Praça Municipal e a Praça da Sé. Os casarões agora recuperados foram erguidos ali entre 1910 e 1920 e estavam em avançado estado de deterioração. A Igreja da Misericórdia, com o telhado avariado, estava fechada havia um ano (as obras recuperadas ficavam na Sacristia da Santa Casa). "A recuperação envolveu uma grande parceria entre o governo federal, o Estado, a Prefeitura e empresas privadas", diz Paulo Avena, coordenador-executivo do Projeto Portal da Misericórdia. Cerca de R$ 10 milhões foram obtidos por meio da renúncia fiscal da Lei Rouanet. O total estimado, de R$ 20 milhões, será gasto até a conclusão do projeto, no fim de 2003. Para Emanoel Araújo, o trabalho desenvolvido na Santa Casa de Salvador serve como um indicador de civilidade, além de um mero restauro. "O projeto pretendeu fazer uma série de ações públicas que pudessem servir como idéia pioneira da recuperação de uma instituição", ele pondera. Para Araújo, a recuperação da Santa Casa é importante para se afirmar "a permanência da filantropia, no bom sentido da palavra", além de garantir a permanência do registro de um tempo, de uma época. "O patrimônio artístico da Santa Casa é pequeno, não dá para um museu, mas é um importante centro de referência histórica da vida social da Bahia".

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