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Projeto quer manter espírito literário em casa de Hilda Hilst

Lendária chácara de Campinas onde viveu por 40 anos a escritora é restaurada

Por Agencia Estado
Atualização:

No portão enferrujado, latidos nervosos recebem os visitantes. Passado o susto, chamam a atenção as duas fileiras de palmeiras que levam até a Casa do Sol, na lendária chácara de Campinas onde viveu por quase 40 anos a escritora paulista Hilda Hilst, morta há três anos e que completaria 77 anos neste sábado. Os cachorros logo se esquecem dos "intrusos" e se espalham pelo terreno de 12 mil metros quadrados, repleto de árvores - no total, são 40 cães, embora a escritora tenha vivido ali com mais de 100. Ao redor da casa rosada de 700 metros, pessoas trabalham para deixar tudo em ordem, à espera dos convidados desta noite de quinta-feira, 20. Um projeto de 500 mil reais para restauro e revitalização da chácara será apresentado nesta quinta para cerca de 80 empresários e potenciais patrocinadores. Entre obras previstas, estão um teatro de arena para 80 pessoas e uma biblioteca, além da descupinização do teto e de muitos móveis da casa. "Será mais um centro de estudos, e não um museu. Será o que sempre foi, um espaço para pensar, estudar, trocar idéias", explicou o escritor José Luis Mora Fuentes, amigo de longa data e herdeiro da Casa do Sol e dos direitos autorais de Hilda. "Ela sempre quis isso, transformar a casa em uma fundação, em um centro cultural." Mora viveu 22 anos na casa junto com Hilda, após a conhecer no final dos anos 1960. Agora ele está de volta, desde dezembro, ao lado da mulher, a artista Olga Bilenky. Assim como Mora, outros artistas também viveram ali, como o escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996). O local foi um ponto de encontro de intelectuais nos anos 1970 e 1980, recebendo visitas de pessoas como Lygia Fagundes Telles e Antunes Filho. Hilda, cujos mais de 40 livros publicados a transformaram em uma das escritoras mais importantes em língua portuguesa, começou na poesia, com os livros Presságio (1950) e Balada de Alzira (1951). Na década seguinte, investiu em peças de teatro e chegou à ficção com Fluxo-Floema, em 1970. Tentou popularizar seu trabalho com a polêmica trilogia pornográfica iniciada com O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990). Também escreveu muitas crônicas e colecionou fãs do calibre de Carlos Drummond de Andrade, que lhe dedicou um poema em 1952. Os preferidos Hoje, duas estudantes bolsistas que se dedicam à obra de Hilda moram também na casa. Assim como Olga, elas ajudavam na quarta-feira na limpeza para a recepção dos convidados. O projeto prevê a transformação de outros quartos para estudantes, que terão acesso à biblioteca pessoal da escritora, com cerca de 600 volumes, muitos com anotações pessoais, uma preciosidade para os estudiosos. No escritório que era de Hilda, sua máquina de escrever foi substituída por um computador. Na quarta-feira, descansava ali Aninha, 12 anos, vira-lata de pequeno porte. "Era a favorita de Hilda, dormia com ela na cama", lembrou o amigo. No local, estão os livros que foram importantes para a formação da escritora, como obras de James Joyce, Samuel Beckett, Georges Bataille e o decisivo Carta a El Greco, do grego Nikos Kazantzakis, que defendia a necessidade de isolamento do artista para a produção de uma obra. O livro foi vital para que Hilda abandonasse a vida boêmia e a elite paulistana para se isolar em Campinas, em meados dos anos 1960, em uma fazenda de sua mãe onde nem luz havia, mas que hoje é um condomínio luxuoso da cidade, chamado Shangrilá. A Casa do Sol, embora sem luxo algum, é a primeira do condomínio, a poucos metros da Rodovia Campinas-Mogi Mirim, cerca de 20 minutos do centro de Campinas. "Ela vivia bem em São Paulo, era jovem, muito bonita, muito livre para sua época e começava a ser reconhecida por sua poesia", lembrou Mora, 55 anos. "Mas as pessoas achavam que ela ia durar (nesse isolamento) dois, três dias, que ia aparecer numa revista com botas novas e pronto." Vozes do além Além dos cães, outras histórias ajudaram a criar o status mitológico da chácara: as gravações de vozes do além e a figueira do jardim. Cerca de 200 fitas estão guardadas na casa, da época em que ela passou captando vozes enigmáticas, com gravadores espalhados pelo terreno, nos anos 1970, em uma fase conhecida por sua dedicação à metafísica e ao estudo das almas. "Isso exigia muito ouvido, e como éramos dois cabeças-duras, brigávamos muito, então achei melhor parar depois de uns seis meses. Mas ela continuou por uns quatro anos", lembrou Mora, comentando que a amiga também dizia já ter tido contatos com discos voadores. Além do pátio interno, onde os moradores tomavam seus longos cafés da manhã, outra parte emblemática da casa é a figueira com um balanço, mesa e cadeiras de pedra. "As pessoas falavam muito dessa figueira, que Hilda fazia rituais e tal, mas é tudo besteira. A gente vinha aqui, tocava nela e fazia pedidos, é uma árvore tão grande, talvez se realizassem", disse Mora, com um sorriso. Nos últimos anos de vida, Hilda recebeu poucas visitas, apenas de amigos mais íntimos. Hoje, é possível conhecer a casa através de agendamento, mas o acesso não é dos mais simples. Para ajudar, a chácara consta no mapa do site da prefeitura (www.campinas.sp.gov.br/infotur).

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