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O fio condutor do filme é 'Remember This House', um livro que Baldwin deixou inacabad

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

NOVA YORK - As luzes do cinema acenderam, os letreiros ainda rolavam na tela, mas a plateia demorou a juntar agasalhos e sair, como se seus corpos tivessem ganho peso naqueles 90 minutos. As imagens e palavras finais do filme cobravam uma dívida que não seria saldada no fim daquela tarde gelada. No máximo, seria debatida com desconforto e boas intenções em distintos cafés nas proximidades do Lincoln Center.

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Procurei e só encontrei brancos na sessão de Eu Não Sou Seu Negro, o filme mais importante em cartaz hoje nos Estados Unidos, uma urgente aula de história. O documentário do haitiano Raoul Peck, indicado para um Oscar, demorou dez anos para ser concluído. Não poderia ser mais atual num país onde o primeiro presidente negro é sucedido pela ressurgência de um movimento nacionalista branco encarado com uma complacência que surpreende os mais calejados pessimistas.

O romancista, dramaturgo e ensaísta James Baldwin morreu em 1987, aos 63 anos, na casa de Saint-Paul-de-Vence, que era visitada por uma romaria de artistas americanos de passagem pela Provence, como Miles Davis, Nina Simone e Sidney Poitier.

O documentário se utiliza apenas das palavras de Baldwin, quando não ditas por ele, em entrevistas e palestras, poderosamente enunciadas pelo ator Samuel L. Jackson. O fio condutor do filme é Remember This House, um livro que Baldwin deixou inacabado e que pretendia examinar os assassinatos de três grandes líderes negros de direitos civis, Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King, mortos entre 1963 e 1968. 

Além de ter sido um dos grandes intelectuais americanos do século 20, Baldwin se distinguia dos contemporâneos do movimento negro por se considerar uma testemunha, não um ativista. Condenava a violência, condenava o cristianismo em que havia sido criado e era gay. Tinha em comum com Barack Obama a recusa de odiar o branco. 

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Reproduzo aqui um momento eloquente do documentário. Um filósofo da Universidade de Yale é convidado a se juntar a Baldwin no talk-show de Dick Cavett, dois meses depois do assassinato de Martin Luther King, em 1968. O professor branco exala aristocracia paternalista.

Paul Weiss: “Tenho mais em comum com um acadêmico negro do que com um branco que seja contra a academia. Você tem mais em comum com um autor branco do que com um negro que seja contra toda literatura. Então, por que devemos nos concentrar sempre em cor, ou religião? Há outras formas de conexão entre os homens”.

James Baldwin: “Vou lhe dizer. Quando deixei este país, em 1948, fui embora por uma razão e só uma. Não me importava para onde ia, podia ter ido para Hong Kong ou Timbuktu. Eu vivi nas ruas de Paris com US$ 40 no bolso, sob a teoria de que nada de pior poderia acontecer lá que já não tivesse acontecido comigo aqui.

Você fala de eu ser bem-sucedido como escritor sozinho, pois teria que virar toda a antena sob a qual vive, porque quando você dá as costas para esta sociedade, você pode morrer. É muito difícil sentar à máquina de escrever e se concentrar se você está com medo do mundo à sua volta. Os anos que morei em Paris fizeram por mim uma coisa: eles me livraram daquele terror particular que não é paranoia minha, mas um real perigo social, evidente no rosto de cada policial, cada patrão, todos”.

Baldwin tentou ser testemunha da traumática década de 1960 nos Estados Unidos. Mas, em 1970, foi viver seu segundo exílio voluntário na França. Quando ouviu Bobby Kennedy prever, pouco antes de ser assassinado, em 1968, que dali a 40 anos o progresso nas relações raciais resultaria no primeiro presidente negro, Baldwin não foi sarcástico apenas sobre o longo prazo sugerido. A questão, para ele, era que país seria governado por um negro. A resposta nunca foi tão urgente.

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