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Pro Rio

Tinha resistido ao impulso de fugir de casa para ser aviador, mas não resisti ao impulso de ir pro Rio. Onde, um dia, apareceu a Lucia na minha vida

Por Luis Fernando Verissimo
Atualização:

Meu plano era o seguinte: ir para o Rio, trabalhar em qualquer coisa, ganhar dinheiro e seguir para Londres. Naquela época estava todo mundo seguindo para Londres. Eu não tinha diploma de nada ou qualquer aptidão ou talento aparente, mas o “qualquer coisa” que me enriqueceria não parecia uma ambição tão irrealista.

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Em um ano fazendo “qualquer coisa” (talvez publicidade, talvez traduções do inglês, talvez batendo carteira) no Rio, eu encheria os bolsos e me mandaria. Fácil. * A ideia era cinema, fazer cinema. Às vezes imagino como seria se não tivesse saído da casa do pai e esperado a vida ir me buscar. Não resistir ao impulso de ir embora foi uma decisão difícil, ainda mais para um tímido incurável e comodista nato. Me convenci de que chegara a hora de ir pro Rio.

Não me desanimou o medo de que quem reprime seus impulsos, e faz tudo que dá vontade de fazer na hora em que dá vontade, acaba preso ou gravemente desfigurado. Civilização é autocontrole. Só chegamos vivos a esse ponto porque resistimos à tentação de dizer aquela verdade, enterrar o nariz entre aqueles seios fazendo “ióim, ióim”, jogar tudo no 17 ou sair dançando com o magistrado.

Todo homem – pensava eu, atrás de razões para não sair de casa – é a soma não das suas decisões, mas das suas hesitações, ou do que, pensando melhor, decidiu não fazer. Nunca lamente o caminho não tomado, ele provavelmente levaria à ruína.  * Quanta gente você não teve vontade de esgoelar e, no fim, apenas sorriu e limpou um fio de cabelo imaginário da sua lapela? Quanto jornal você não teve vontade de amarrotar e jogar no lixo, desejando que em vez do jornal fosse o articulista, mas se conteve e passou, educadamente, à página seguinte? Deveria ter se controlado.

Fez bem em ignorar o aviso de que a repressão de impulsos leva a manchas na pele, cavernas no fígado e sono agitado do qual você acorda soqueando o travesseiro. Uma retrospectiva de tudo o que você imaginou fazer e não fez o convenceria que foi mais prudente abandonar aquele plano de dinamitar o Ministério da Fazenda e, em vez disso, mandar uma carta com ironias pesadas sobre o modelo econômico aos jornais? A orelha dela estava ali, a poucos palmos da sua boca, por que não dar uma mordidinha, só porque vocês estavam numa roda com outros, inclusive o marido dela, e ninguém entenderia quando você explicasse que confundira a orelha com um canapé? Mas você recuou, civilizadamente. Fez bem.  *  Eu já, por exemplo, tinha resistido ao impulso de fugir de casa para ser aviador. Poupei-me da frustração de descobrir que eles não aceitavam pilotos de caça com menos de 6 anos de idade. Fiz bem. Corri atrás de uma menina para dizer que a amava, pensei melhor e apenas esbarrei nela, esperando que ela interpretasse a colisão como uma declaração. Deixei-a sentada no chão, chorando, mas escapei do ridículo, pois eu nem sabia seu nome.

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Pensei vagamente em estudar arquitetura, como todo o mundo. Acabaria como todos que eu conheço que estudaram arquitetura, fazendo outra coisa. Poupei-me daquela outra coisa, mesmo que não tenha me formado em nada e acabado fazendo esta outra coisa. Mas não resisti ao impulso de ir pro Rio. Onde, um dia, apareceu a Lucia na minha vida. * Às vezes, me pergunto como teria sido se eu não tivesse reprimido o impulso de ir estudar cinema em Londres. Eu hoje poderia ser, sei lá, um dos melhores lavadores de prato do Soho. 

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