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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Primaveras

Não existe emoção 4k; nem holograma capaz de captar o clima da época de ‘Deus e o Diabo’

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Atualização:

A maior atração do cinema brasileiro no vindouro Festival de Cannes é um filme exibido naquela mostra há 58 anos. Desde então aplaudido e premiado mundo afora, Deus e o Diabo na Terra do Sol será visto pela primeira vez numa cópia restaurada, com resolução 4k. Triste saber que Glauber Rocha e a maior parte de sua equipe não poderão curtir esse upgrade. 

Dois raríssimos sobreviventes daquele feito cinematográfico me vêm à cabeça, o ator Othon Bastos e o cineasta Walter Lima Jr., assistente de direção de Glauber. Estes verão Deus-Diabo com a nitidez e riqueza de detalhes inalcançados pelas versões em circulação há cinco décadas, únicas a que as novas gerações tiveram acesso. 

Cena do filme 'Deus e o Diabo na Terra do Sol', de Glauber Rocha Foto: Copacabana Filmes

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O impacto causado pelo filme em sua estreia não há prodígio tecnológico que o reproduza e supere. Não existe emoção 4k; nem holograma capaz de captar o clima daquela época, o zeitgeist do Brasil pré e pós-ditadura, o Brasil do Cinema Novo e das ilusões perdidas. Já comparei as primeiras sessões do filme, mutatis mutandis, à histórica montagem da Sagração da Primavera, em Paris, em 1913, sem as vaias e os apupos dirigidos à obra de Stravinski. Deus-Diabo foi só consagração.

Amigo de Glauber e companheiro de Walter Lima Jr. na redação do Correio da Manhã e na Cinemateca do MAM, acompanhei o projeto desde o início, quando ainda se intitulava Rebelião Camponesa. Não me recordo se já fora rebatizado de Viva a Terra, quando Glauber, num encontro no restaurante Fiorentina, na Praia do Leme, convenceu Walter a largar tudo no Rio e acompanhá-lo até o sertão baiano.

Segui as filmagens de longe, pelas cartas que Walter me enviava de Cocorobó (Canudos), culminando com uma longa jornada noturna num estúdio de dublagem, com Glauber, Yoná Magalhães e Othon Bastos, num tremendo tour de force, a dublar si próprio (como Corisco) e Lídio Silva (o beato Sebastião). 

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A primeira exibição foi privée, bem privada, no cinema Vitória, centro do Rio, na manhã de uma sexta-feira 13. Atente para o mês: março. E para o ano: 1964. No dia seguinte, Glauber completaria 25 anos, a mesma idade cabalística com que Orson Welles dirigiu Cidadão Kane.

Na tarde da sexta 13, houve o histórico Comício de João Goulart na Central do Brasil, que serviria de pretexto para o golpe civil-militar desfechado 18 dias depois. 

A segunda sessão, também exclusiva para convidados, foi no cinema Ópera, na Praia de Botafogo, a 15 dias do golpe. “A esquerda, toda ali, à beira de sua grande derrota, ainda teve tempo de ver sua melhor produção nascer”, recordaria Arnaldo Jabor, no mais tocante testemunho que li sobre aquela noite inesquecível. A despeito do inverno entrante, conseguimos sagrar nossa primavera na tela. 

Opinião por Sérgio Augusto
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