Por que os estádios não podem ter grades

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Por Agencia Estado
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Era para ser só uma resenha, mas a realidade está sempre a dar mais sentido aos livros. Febre de Bola (Rocco, 248 págs., R$ 25), o primeiro livro do britânico Nick Hornby, o mesmo de Um Grande Garoto e Alta Fidelidade, é um relato pessoal de um torcedor fanático, desses que não perdem nenhuma partida em casa, tentam assistir a quase todos os jogos fora de casa e organizam a história da própria história a partir de disputas dos seus times prediletos - no caso, o Arsenal. Mas é também um livro de reflexão, de um talentoso escritor, capaz de manter uma conveniente distância em relação ao seu personagem principal, mesmo numa autobiografia. E uma das conclusões mais importantes a que Hornby chega, depois de tanto ver jogos de futebol, é que nenhum estádio pode ter grades como as que separavam o campo da torcida em São Januário, no Rio de Janeiro, na final da Copa João Havelange, no triste dia de 30 de dezembro de 2000. Hornby, involuntariamente, acaba por ensinar que as pessoas que estavam em São Januário, muito provavelmente, foram salvas pelas bactérias que corroeram os pés das grades que isolavam o campo: se as barras ali estivessem firmes, é possível que muitos torcedores acabassem expremidos nelas ou fossem pisoteados até a morte. O autor conta que, "numa bela manhã de primavera em 1982", levou o filho de um amigo para ver o jogo entre o Arsenal e o West Ham. Explicou-lhe, "num tom insuportável de veterano", que estavam seguros no canto inferior esquerdo, porque uma possível confusão começaria apenas no canto superior direito do lado norte do estádio. "Cerca de três minutos após o pontapé inicial, ouviu-se um clamor imenso imediatamente atrás de nós e aquele som terrível, estranhamente abafado, de botas chocando-se com calças de brim. Os que estavam atrás de nós lançaram-se à frente, e fomos empurrados em direção ao campo (...). No final não tivemos opção: Mark e eu, além de centenas de outros, pulamos o muro e caímos naquele gramado sagrado no exato momento em que o West Ham ia bater o corner." Segundo Hornby, no livro, publicado originalmente em 1991, "há uma ironia horrível e assustadora nisso". "Em Highbury não há alambrado cercando o campo. Se houvesse, aqueles de nós empurrados na direção do campo teriam tido sérios problemas naquela tarde." Em 1989, em outro estádio, o Hillsborough, havia, por exigência da Liga de futebol inglesa, sido instalado o alambrado. Numa semifinal entre o Liverpool e o Nottingham Forest, 95 pessoas morreram após uma correria. Hornby escreve: "Foi o alambrado, o próprio equipamento que permitiu que o jogo ocorresse ali, que as matou, impedindo-as de livrar-se do esmagamento e fugir para o campo." Febre de Bola, assim, rebate qualquer argumento que qualquer dirigente utilize para retirar sua responsabilidade no acidente - como se a superlotação evidente já não fosse, em si, inominável. Tragédias como a de Hillsborough e a do jogo entre Liverpool e Juventus, na Bélgica, em 1985, quando foram contabilizados 38 mortos, também comentada por Hornby, poderiam ter servido para que novos desastres fossem evitados. Infelizmente, passada mais de uma década, os estádios brasileiros continuam a ser um fator de risco de vida para quem os freqüenta. Retranca - O livro não é feito só de tragédias, até porque as emoções tristes que o futebol proporciona não se limitam a elas. Um dos capítulos, intitulado Pelé trata do jogo entre Inglaterra e Brasil na Copa de 70, e Hornby admite que a seleção brasileira "revelou uma espécie de ideal platônico que ninguém, nem os próprios brasileiros, seria capaz de atingir novamente". Também o Arsenal é capaz de produzir sentimentos ambíguos, pois se trata de um desses times famosos por jogar na retranca a maior parte de suas temporadas, o que mexe com os nervos de qualquer um de seus torcedores. Numa breve exceção, o time adotou o carrossel holandês como modelo, resultando em goleadas inesquecíveis - os adversários, rapidamente, no entanto conseguiram dominar o novo estilo de jogo, e as goleadas se invertem, até o Arsenal retornar à velha defesa cerrada e ao chuveirinho no ataque. Hornby é um dos poucos escritores atuais capazes de lidar com familiaridade com a cultura pop - seja a do futebol e seus astros, seja a da música e suas estrelas - de modo inteligente e fluido, sem, com isso, deixar de enxergar suas contradições. O fato de tratar de personagens pouco conhecidos dos brasileiros - a quase totalidade dos jogadores citados só integra o repertório dos torcedores ingleses dos anos 70 e 80 - não chega a tirar-lhe a força. Mais que uma reflexão sobre o esporte, Febre de Bola é um mergulho de cabeça e na cabeça de um personagem que só passou a existir de fato no século 20 - o do torcedor de futebol, que se julga (e talvez seja) tão importante quanto os jogadores. Sua leitura poderia ser um passatempo alegre e divertido, se não fosse tão verdadeiro a ponto de ser repetido pela realidade.

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