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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Por que ele?

Bach é matemática pura. O mundo parece alinhado com sua partitura

Atualização:

Na excelente minissérie Outlander (Ronald Moore, a partir de 2014), a enfermeira Claire vai do século 20 para o 18. Acompanhando seu amor escocês, ela está em Paris e tenta decifrar um código que apresenta notas musicais. A irmã Hildegarde a ajuda. É freira e música. Em determinado momento, a religiosa reconhece uma melodia de Bach. Sentencia que “Herr” Bach é engenhoso, mas faltam-lhe os predicados para ser um músico que ficará na memória. Claire, tendo vindo do futuro e conhecedora da glória suprema de Johann Sebastian, sorri diante do juízo que o tempo tornaria falso.

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No excelente prefácio de texto sobre o compositor, Mário Alves Coutinho cita Emil Cioran. A frase é iconoclasta demais para pessoas de fé. Ou não... “Se existe alguém que deve tudo a Bach, trata-se exatamente de Deus. Sem Bach, Deus seria diminuído. Sem Bach, Deus seria um tipo de terceira ordem. Bach é a única coisa que nos dá a impressão de que o universo não é algo fracassado. (...) Sem Bach, eu seria um niilista absoluto.” (Tudo Tem Que Ser Possível: O Livro de Johann Sebastian Bach. Organizado e traduzido por Mário Alves Coutinho. Tipografia Musical, 2018.)

Bach é um mosaico harmônico. Ele é matemática pura. O mundo parece ordenado com sua partitura. O tempo, a entrada de um tema musical, os comentários sobre a melodia e a volta perfeita mostram que ele tinha o toque de Pitágoras: a verdade do universo pode ser expressa por grandezas numéricas e geométricas. É a “música das esferas”. Bach é a tabuada de Deus, ou se preferirem o ímpio Cioran, Deus é a grandeza precisa e matemática de Bach.

Além da ordem metódica, Bach é melodia. Quase todas as pessoas sorriem quando escutam o tema de Jesus, Alegria dos Homens, coro final de uma cantata (obra para instrumentos e canto). A obra fará, em breve, 300 anos. Narra a visita de Maria a sua prima Isabel, no evangelho de Lucas. A inglesa Myra Hess (1890-1965) fez uma transposição linda para piano. Em 1972, o grupo pop Apollo 100 explodiu nas paradas de sucesso com uma versão da melodia. Toquei a versão para órgão no enterro da mãe da minha orientadora, na Igreja São José, em São Paulo. Janice se emociona até hoje com a música que sua mãe adorava. Cioran começa a ficar mais plausível.

Ouvir os seis Concertos de Brandenburgo afasta a tristeza nos dias que correm. O movimento Allegro inicial do concerto 4 é um portal para a música clássica. Se você não gostar, paciência. Seu campo não é a música erudita. Mas... não desista da vida. Você não é pessoa ruim, apenas é... você. Sejamos misericordiosos: permita-se uma segunda chance. Escute a Ária da Quarta Corda (Ária da Suíte 3). Continua não funcionando? Bem, o importante é ser limpinho. Recomendo estudos espíritas: em religiões reencarnacionistas, talvez, você possa voltar um dia dotado de algum espírito... É uma esperança.

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A Paixão Segundo São Mateus exige maior foco e preparo. Texto em alemão e melodia complexa. Há um trecho que cantei em um madrigal na juventude. Fala do rosto ensanguentado de Cristo na Sexta da Paixão (O Haupt voll Blut und Wunden). A crença do músico no poder redentor de Cristo exala em cada nota da peça. A versão da letra em alemão (Paul Gerhardt) nasceu de velho hino medieval. Bach ampliou a ideia, deu majestade, dignidade e um grito que mistura luto, dor e esperança na função redentora do Nazareno. A música é a definição estética da fé. 

O estudante de piano vai descobrindo Bach como uma escadaria. As peças do livro de Ana Madalena, as invenções a duas e três vozes, pequenos prelúdios e fugas, e um dia surge o contato com o Cravo Bem Temperado. Deveria ser uma obra didática para estudar os 24 tons, 12 maiores e 12 menores. O riacho pedagógico (aliás, Bach é riacho em alemão) vai se ampliando para um oceano infinito. Se seu ouvido já começa a vibrar bachianamente, é hora de escutar as Variações Goldberg. Há registros impressionantes do canadense Glenn Gould (1932-1982) e do nosso João Carlos Martins.

Há dias pesados na vida. 2020 não entrará na nossa memória como o ano mais tranquilo da existência de cada um. Sobrevivemos, aos trancos e barrancos. Quando eu sinto a Tristeza (letra maiúscula, aqui é personagem alegórica, como em Calderón) avançando, digo que ela tem razão, que não é irracional e que sentir-se mal nestes tempos é quase ter alguma consciência. Porém, convido minha companheira de crise para ouvir a Missa em Si Menor, do velho Bach. Quando o autor começou a ser redescoberto, no século 19, o editor suíço Hans Georg Nägeli chamou-a de “a maior obra de arte musical de todos os tempos e nações”.

Pego um vinho, convido a Tristeza para que se sente. No Kyrie, ela sorri e começa a entender meu propósito. No Glória, ela parte, sem ressentimentos. Ela sabe que é forte, mas Bach é maior. Sempre desejei que, no meu enterro, tocassem este Kyrie e este Glória. Ao ouvir a palavra morte, a Tristeza, da porta, se volta e sorri mais um pouco, do jeito sinistro dela. Sim, ainda não é a hora derradeira, no entanto sua suave noite fria está em paralelo. O sol de Bach vai continuar penetrando pelas paredes da sala e pelas gavetas da minha consciência. Por que ele? Por que Bach? Não sei. Diante do gênio de Bach, eu sou um apagado Chicó de Suassuna que olha para o sertão da minha existência e agradece: “Só sei que foi assim”. Sei pouco de Deus hoje, porém, como ele, devo tudo a Bach. Só ele me impede de perder por completo a esperança em momentos como esse. Boa semana, bachianos.

Opinião por Leandro Karnal
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