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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Por que Bolsonaro não usa máscara?

No Brasil, ser superior é não estar com a lei, mas se situar a acima dela, é claro

Atualização:

Fiz a pergunta a muitas pessoas de ambos os polos e a uma minoria centrista que procurei como um detetive. Todos se assombraram com a minha inocência. Como é que eu – professor titular de Antropologia Social e pesquisador da chamada “alma brasileira” – não sabia que, entre nós, quem manda não obedece? 

O presidente da República Jair Bolsonaro Foto: Dida Sampaio/Estadão

Como é que eu podia ignorar que, no Brasil, mandar anula o obedecer, essa desagradável anormalidade democrática que inverte a velha ordem? Como é que eu esquecia que “estar no poder” é sinônimo de não seguir coisa alguma porque obedecer é o carimbo dos fracos e dos pobres?  É claro que Bolsonaro não usa máscara! Como é que ele ia aceitar tal banalidade se o sinal que envia é o de que pode tudo? No Brasil, ser superior é não estar com a lei, mas se situar a acima dela, é claro.  É ter o privilégio de não ser cidadão. De provocar e abusar, na certeza de não ser punido. É ser “impunível” e, se preso for, ter a plena confiança de que um jurisconsulto ponderado vai livrá-lo da prisão que será especial – um xadrez hierárquico e diferenciado...  Ninguém definiu tais condições com mais clareza do que o próprio Bolsonaro quando, em 12 de maio do corrente, numa de suas tiradas absolutistas, declarou que “só Deus me tira daqui” e, no dia 17, afirmou ser “imorrível, imbrochável e também incomível”. O incomível é curioso. Ele salienta a qualidade bolsonaresca de ser duro de roer, mas deixa de lado outras implicações que Freud explica e eu prefiro não comentar...  A arrogância expõe as propriedades conhecidas, mas pouco discutidas de todos os que “sobem”, “chegam” ou “tomam” o poder no Brasil. Aqui (como na chamada América Latina), ser irremovível ainda é o sonho de quem encabeça um sistema que transforma eleições em rituais dinásticos, ministros em fidalgos ou criados, e o eleito em salvador (ou matador) da pátria. O populismo é o modelo resistente à igualdade do presidente perante a lei. Aprendemos que o dono da bola pode mudar as regras do jogo e, sendo contrariado, ele acaba com o jogo.  O “golpe” é uma possibilidade constante em países nos quais verdade e mentira se contestam. É preciso perceber como crimes políticos hediondos, como “o rouba, mas faz”, ainda são vistos como piadas e folclore. O que mostra como evitamos examinar o protagonismo dos costumes sobre as instituições. Aquilo que é positivo na família, e até mesmo no partido, contraria a ética democrática.  É preciso compreender como a ambiguidade ética corrói a impessoalidade obrigatória das democracias, cuja disciplina se baseia na separação de pessoas e cargos. O atualíssimo e atrasado “manda quem pode e obedece quem tem juízo” é um mote escravocrata. É uma prova da desigualdade como valor no Brasil.  A decepção bolsonarista tem tudo a ver com a incapacidade de negar o pedido de um amigo e de ver essa incapacidade como normal. Como se lei, civilização, costumes e comportamentos fossem seres de planetas diferentes, quando são dimensões necessariamente relacionadas nos regimes democráticos.  Caso a “casa” continue a englobar a política e a “rua”; caso os elos pessoais sejam mais valorizados do que a moralidade coletiva, temos incesto. O que iguala estruturalmente incesto e “corrupção” é o romper com uma norma pública universal em favor de desejos particulares. Pois como adverte sabiamente a revista Playboy, “o incesto é legal desde que seja mantido em família”.  Mas como manter a muralha da família (e dos compadrios) ao lado da liberdade do mercado e das gravações reveladoras da verdadeira máscara do invocador do tribunal de Nuremberg e também das facções de ataque e defesa do governo que são (com a devia vênia) contumazes potoqueiros? Por que – essa é a grande questão – o campo político virou um espaço de mentiras, malandragens e desenganos?  O abominável no comportamento de Jair Bolsonaro é que ele ainda não conseguiu entender a magnitude do papel de Presidente da República. É claro que tudo tem a ver com a crença de que ele se pense – como disse com uma ingenuidade embaraçosa – como “imortal, incomível e imbrochável”. Delas todas, invejo a mais humana, a última. Como dizia o velho e querido brasilianista Richard Moneygrand, dificilmente se faz democracia com faraós. É ANTROPÓLOGO SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’

Opinião por Roberto DaMatta
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