EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Psiquiatria e sociedade

Opinião|Por hoje é só

Para quem está trabalhando de casa, trocar de roupa como se fosse sair para o escritório ajuda a mudar o ritmo, enviando para nós mesmos a mensagem de que acabou o descanso. Logo, colocar o pijama dá a mensagem oposta: por hoje é só

PUBLICIDADE

Foto do author Daniel Martins de Barros
Atualização:

Essa pandemia mexeu com a gente mais do que pensamos. Nós não ignoramos as grandes mudanças como transformações nas relações de trabalho, na rotina escolar, nos cuidados durante as interações com os outros. Dessas, que afetaram praticamente todo mundo de uma forma ou de outra, todos estamos cientes. Mas o quanto mais não terá sido modificado abaixo do radar da consciência coletiva?

'Para quem está trabalhando de casa, trocar de roupa como se fosse sair para o escritório ajuda a mudar o ritmo, enviando para nós mesmos a mensagem de que acabou o descanso. Logo, colocar o pijama dá a mensagem oposta: por hoje é só' Foto: Pixabay

Há algum tempo, notei que minha família se espantava quando eu anunciava que estava indo tomar banho. “Mas já vai por pijama?”, indagava, perplexa, minha filha mais nova. Como é hábito em casa tomar banho antes de dormir, a sequência esperada era banho, pijama, cama. E só diante do questionamento dela me dava conta de que ainda estava claro – ainda não era noite, longe da hora de dormir, e eu já iniciando os rituais de fim de dia. Interessante como é, no olhar dos outros, que muitos de nossos hábitos aparecem para nós. Sem o espelho ativo da alteridade, podemos passar a vida inteira cheios de manias contingentes acreditando que elas são necessárias. Mas basta que alguém nos pergunte “por que?” para que nos damos conta de que aquilo é, mas poderia não ser. Isso quando estamos abertos para a postura sempre salutar de não responder apenas “porque sim”. Mas estou divagando. O que me importa aqui é refletir sobre os mistérios do pijama, já que, diante dos questionamentos familiares, me dei conta que estava realmente com a mania de, sempre que possível, tomar logo banho e pôr pijama, mesmo que não fosse dormir. O que estaria acontecendo? Não precisei investigar muito para descobrir que o pijama tem esse superpoder. Nesse mesmo espaço, eu já havia escrito, meses atrás, como pode ser contraproducente passar o dia com essa indumentária, por mais confortável que ela seja. Para quem está trabalhando de casa, trocar de roupa como se fosse sair para o escritório ajuda a mudar o ritmo, enviando para nós mesmos a mensagem de que acabou o descanso. Logo, colocar o pijama dá a mensagem oposta: por hoje é só. É ou não um superpoder? Ter a capacidade de olhar o calendário e dizer para aquele dia: você acabou. Não é algo trivial. Sobretudo nessa pandemia em que, ao longo do dia, nós somos demandados continuamente, gastando uma tremenda energia para dar conta de tudo e de todos e ainda nos mantermos minimamente equilibrados. O horário comercial tornou-se ainda mais um período de intenso esforço mental, com consequente desgaste emocional. Colocar um ponto final no dia, portanto, tornou-se um alívio. Nem sempre conseguimos fazer isso, claro. É mais frequente do que eu gostaria: acontecer de o dia durar mais do que eu. Mas só de ter descoberto esse poder – ainda que não possa exercê-lo sempre –, minha perspectiva diante dos dias foi transformada. Como dizia no início, está aí uma mudança trazida pela pandemia da qual nem tinha me dado conta. Mas, apesar de discreta, ela traz um ensinamento de ouro para nossa saúde mental: seja da forma que for, seja quando for, é fundamental não negligenciarmos a importância das pausas. Elas fazem toda diferença quando precisamos continuar em frente sem esmorecer. E do que mais precisamos hoje?  É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.